Nota de posicionamento: referente à decisão do julgamento de Ação Direta de Inconstitucionalidade pelo STF, em relação a comercialização e acesso aos testes psicológicos

O Conselho Regional de Psicologia – Minas Gerias (CRP-MG) vem a público manifestar-se em relação a Ação Direta de Inconstitucionalidade Nº 0001758-52.2005.1.00.0000, do Supremo Tribunal Federal (STF), que tratou sobre a Resolução do Conselho Federal de Psicologia (CFP), sobre a comercialização de testes psicológicos. A ação foi julgada nas sessões virtuais de 26/02 a 05/03, tendo sido o resultado divulgado no dia 08 de março de 2021 no portal eletrônico do Tribunal. A decisão pode ser encontrada na integra (clique aqui). 

No voto do relator, Ministro Alexandre de Moraes, acompanhado pelos Ministros Cármen Lucia, Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski, Luiz Fux, Luís Roberto Barroso e Kássio Nunes Marques, decidiu-se pela inconstitucionalidade material do inciso III e dos parágrafos 1º e 2º do art. 18 da resolução 002/2003 do CFP, que trata da avaliação psicológica, hoje substituída pela resolução CFP Nº 009/2018 que “Estabelece diretrizes para a realização de Avaliação Psicológica no exercício profissional da psicóloga e do psicólogo, regulamenta o Sistema de Avaliação de Testes Psicológicos – SATEPSI e revoga as Resoluções nº 002/2003, nº 006/2004 e nº 005/2012 e Notas Técnicas nº 01/2017 e 02/2017”. Na decisão e entendimento dos senhores(as) ministros(as), os trechos da referida resolução ferem o princípio de liberdade e acesso à informação e ao conhecimento dispostos na Constituição Federal, pois de acordo com o relator os manuais dos testes psicológicos são “obras de cunho científico-filosófico”. O voto do relator pode ser lido na integra (clique aqui)

Neste primeiro momento faz-se necessário ressaltar o pronunciamento feito no dia 10/3/2021, pelo nosso Conselho Federal de Psicologia (CFP), onde temos que considerar que ainda não fomos oficialmente notificados pelo STF, e em defesa da Psicologia brasileira e pelo fato de que ainda não fomos oficialmente notificados, desta forma este fato traz ao CFP a imposição de algumas limitações. E se a decisão ainda não foi publicada pelo STF a mesma ainda não produz efeito. Lembrando que o STF não foi contra a nossa lei nº 4119/1962, que regulamenta a profissão de psicologia, que se mantém integra e não há questionamentos na função privativa da(o) psicóloga(o), e sim de alguns artigos da Resolução Nº 02/2003/CPF. E nosso CFP está em estudos sobre esta decisão de medidas processuais cabíveis para esta pauta, e o CFP tem o entendimento que os testes psicológicos não podem ser equiparados a livros didáticos e que a comercialização irrestrita invalida a segurança destes testes e porque não dizer a segurança das práticas psicológicas. A restrição da resolução é uma forma de proteger a sociedade por meio da segurança dos testes e consequentemente dos seus resultados, portanto fazer a comparação com livros didáticos não corresponde à realidade uma vez que ter acesso a testes sem critério pode sim produzir um resultado de uma avaliação não qualificada.

Temos que ressaltar que a Avaliação Psicológica é um processo, e a defesa da atuação profissional qualificada e é de extrema importância da parte de todos nós, e é importante estarmos unidos em prol da Psicologia brasileira para fazermos este enfrentamento a favor da Psicologia e da nossa sociedade.

Faz-se necessário elucidar os pontos constantes da decisão dos ministros a favor da inconstitucionalidade da matéria:

  1. Embora os manuais e testes psicológicos sejam obras científico-filosófico não são de divulgação como é apontado no texto do relator. Ainda que contenham informações que direta e indiretamente auxiliam no conhecimento psicológico, sua principal função é transmitir as informações necessárias para ad devida utilização e interpretação dos resultados, o que interessa tão-somente ao profissional qualificado para realizá-las. Cabe ressaltar que existe amplo acesso a informações científicas, principalmente por meio do resultado de estudos realizados com o uso de testes que são obras de divulgação/comunicação de conhecimento científico acessíveis a qualquer pessoa interessada, como estudantes, profissionais de psicologia ou mesmo de outra área do conhecimento, publicadas em revistas, periódicos, livros, artigos, teses de mestrado e doutorado.
  2. O diagnóstico/avaliação psicológica é restrita ao profissional de psicologia conforme a Lei nº 4119/1962, que regulamenta a profissão de psicologia. Sendo os testes instrumentos diretos de uso no processo de diagnóstico/avaliação psicológica, também devem ser restritos aos psicólogos(as). Essa restrição se deve ao fato de que as(os) psicólogas(os) recebem o treinamento adequado para utilizar tais testes. É conhecido o histórico de discriminação e estigmatização associadas ao mau uso de testes psicológicos, logo se faz necessário que o material seja utilizado e os resultados interpretados por profissionais qualificados. Órgãos como o próprio Conselho Federal de Psicologia, o Instituto Brasileiro de Avaliação Psicológica (IBAP), Associação Brasileira de Rorschach e Métodos Projetivos (ASBRO), Instituto Brasileiro de Neuropsicologia e Comportamento(IBNeC), Forum das Entidades Nacionais da Psicologia Brasileira (FENPB), Associação Brasileira de Psicologia do Trafego (Abrapsit) e organizações internacionais de referência em Psicologia como a Associação Americana de Psicologia (APA), a Associação Britânica de Psicologia (BPS) e a Comissão Internacional de Testes, dentre outras.
  3. O argumento de que retirar o acesso restrito dos manuais e testes contribuem para a formação dos próprios estudantes de Psicologia, não nos parece fazer sentido, visto que o diagnóstico/avaliação psicológica faz parte do currículo dos cursos (nos componentes curriculares e estágios), portanto os alunos entram em contato com o material sob a supervisão de profissionais experientes que podem lhes orientar sobre o uso correto e suas implicações éticas na utilização dos mesmos. As Instituições de Ensino Superior (IES) que oferecem a graduação em Psicologia, além de adquirem testes psicológicos para a formação de seus alunos, também mantém os Serviços-Escola, que são espaços nos quais o processo formativo do(a) psicólogo(a) também contemplam o manuseio correto dos instrumentos de testagem psicológica, com a devida supervisão e orientação de seus docentes.
  4. O acesso indevido aos manuais e testes colocam em risco a validade dos instrumentos e do próprio diagnóstico/avaliação psicológica, de modo a comprometer o processo de diagnóstico executado pelos psicólogos(as). Cabe ressaltar que os manuais incluem informações sobre a correção dos formulários e que, por exemplo, no caso de concursos públicos ou processos seletivos, pessoas com melhores condições poderiam comprar o material e utilizá-lo para benefício indevido.
  5. O Conselho Federal de Psicologia e os Conselhos Regionais de Psicologia, que compõem o Sistema Conselhos de Psicologia, por meio da referida resolução, não estabelecem uma privação de conhecimento, mesmo porque existe amplo acesso ao conhecimento produzido na área de psicologia por meio de revistas, periódicos e livros que podem ser encontrados em livrarias, mas resguardam que um instrumento importante de avaliação psicológica seja manuseado apenas por profissionais habilitados, a saber psicólogas(os). Logo, a resolução busca dar providências ao que foi definido pela Lei nº 4119/1962, que regulamenta a profissão de psicóloga(o), no que se refere a prática privativa de diagnóstico/avaliação psicológica aos psicólogos(as), conforme o Capítulo 3, art. 13, parágrafo 1º:

“1º Constitui função privativa do Psicólogo e utilização de métodos e técnicas psicológicas com os seguintes objetivos: a) diagnóstico psicológico; b) orientação e seleção profissional; c) orientação psicopedagógica; d) solução de problemas de ajustamento.

  1. No Código de Ética Profissional (Resolução CFP Nº 010/2005) e em observância a toda prática do ensino da Psicologia como ciência e profissão, é dever da categoria das(os) psicólogas(os), no que tange a sua prática profissional, fiscalizada e orientada pelo órgão de classe da profissão, a saber CFP, zelar e prezar pela segurança e garantia da prestação do serviço de Psicologia para toda a sociedade, especialmente no fornecimento de um serviço de qualidade. Nesse sentido, garantir o acesso exclusivo dos profissionais devidamente habilitados para manusear os testes psicológicos se faz necessário, visto que o contrário pode comprometer o processo e o resultado da avaliação psicológica, trazendo consequências sem precedências para a sociedade. Em relação a esse ponto, é importante citar os princípios fundamentais IV, V e VI, estabelecidos no código de ética da profissão, que garantam o exercício profissional em respeito aos Direitos Humanos e a prestação correta de serviços para a sociedade, a saber: O psicólogo atuará com responsabilidade, por meio do contínuo aprimoramento profissional, contribuindo para o desenvolvimento da Psicologia como campo científico de conhecimento e de prática. V. O psicólogo contribuirá para promover a universalização do acesso da população às informações, ao conhecimento da ciência psicológica, aos serviços e aos padrões éticos da profissão. VI. O psicólogo zelará para que o exercício profissional seja efetuado com dignidade, rejeitando situações em que a Psicologia esteja sendo aviltada.
  2. O próprio relator do caso, Ministro Alexandre de Morais, reconhece que é preciso estabelecer a diferenciação entre a aplicação de testes psicológicos para avaliação psicológica e de outros produtos editoriais para disseminação do conhecimento ou de formação sobre o tema. Contudo, se faz necessário elucidar que os manuais dos testes não são meros produtos editoriais, como livros didáticos, cartilhas e outras publicações no sentido de informar e formar, mas são parte integrante do instrumento de avaliação psicológica e de testagem. Ou seja, o conteúdo dos manuais, apesar de trazer informação sobre a avaliação, serve como material de orientação de aplicação, manuseio e correção, auxiliando o(a) profissional no processo de diagnóstico/avaliação psicológica. Há outros materiais específicos, com acesso irrestrito, como livros e artigos científicos, que têm como objetivo de disseminar conhecimento aos interessados no processo de diagnóstico/avaliação psicológica. Nesse sentido, uma vez dado o acesso irrestrito aos manuais e testes psicológicos, não é mais possível garantir o controle do uso, levando a banalização do processo de avaliação psicológica, colocando o usuário e a sociedade em risco e contribuindo para o exercício ilegal da profissão no que tange ao processo de diagnóstico/avaliação psicológica. Mesmo considerando o apontamento do relator quanto à tarefa de diagnóstico/avaliação ainda ser restrita ao psicóloga(o) é sabido que isso não impede que tais instrumentos sejam aplicados por demais profissionais em seus diversos atendimentos, inclusive aqueles que não possuem o treinamento técnico e ético apropriado, podendo resultar em severas violações de direitos de indivíduos em geral e, especialmente, de populações vulneráveis como pessoas com transtornos mentais.
  3. O entendimento do Sistema Conselhos de Psicologia de que o acesso, uso, compra e manuseio dos testes. psicológicos devem ser restritos aos psicólogas(os), por ser parte da atividade privativa de diagnóstico/avaliação psicológica conforme a Lei nº 4119/1962, é também o entendido por instituições internacionais como a Associação Americana de Psicologia (APA) e a Associação Britânica de Psicologia (BPS), siglas em inglês, duas importantes entidades de Psicologia no mundo, que reconhecem que somente aos profissionais qualificados e registrados podem acessar e manusear testes psicológicos, e que a aquisição desses instrumentos deve ser registrada por parte das editoras/comercializadoras dos testes psicológicos.
  4. Além disso, a Organização Mundial de Saúde (OMS), reconhece a importância de a saúde mental/psicológica ser um aspecto constitutivo no conceito amplo de saúde. Nesse sentido, entendemos que a Psicologia brasileira tem a missão de resguardar e zelar pelo serviço correto e seguro da profissão, inclusive no que se refere ao diagnóstico/avaliação psicológica, uma vez que impactam no bem-estar e de saúde mental das pessoas.
  5. Em observância ao que sustentam os ministros, quanto ao livre acesso ao conhecimento, ressaltamos que sempre foi compromisso e respeito da categoria profissional de Psicologia com o acesso à informação. A Psicologia brasileira é fortemente comprometida com os espaços democráticos de construção do conhecimento e da prática profissional, conforme citado no V princípio do código de ética profissional, a saber: o(a) psicólogo(a) contribuirá para promover a universalização do acesso da população às informações, ao conhecimento da ciência psicológica, aos serviços e aos padrões éticos da profissão. Contudo, há de se observar que restringir o acesso a um instrumento técnico de trabalho não é impedir tal acesso ao conhecimento, mas zelar pela garantia do devido exercício legal da profissão, bem como do cuidado dos impactos para toda a nossa sociedade. Deste modo, a comparação feita pelo ministro relator de que a restrição a aquisição de manuais e livros jurídicos, caso feito por outros conselhos de classe, como a OAB, não nos parece ser sustentável, visto que são objetos distintos, uma vez que manuais e livros jurídicos em si descrevem uma forma de construção de conhecimento e não são, na prática, instrumentos técnicos privados. Ao contrário, o teste psicológico e seus manuais não são materiais didáticos e pedagógicos, mas estritamente técnicos, para a condução do processo de diagnóstico/avaliação psicológica. O conhecimento sobre o processo é adquirido por meio de outros materiais como cursos, livros etc. Assim, o acesso a eles pode permitir o exercício irregular da profissão e, além disso, possibilitar que qualquer pessoa tenha acesso ao instrumento de testagem e possa, inclusive, se preparar para a avaliação, pondo em risco a validade do processo. São conhecidos diversos casos de páginas na Internet que buscam treinar ou ensinar usuários nos testes psicológicos, mesmo eles já sendo privados. O livre acesso poderá aumentar ainda mais essa prática, além de tornar mais difícil a fiscalização por parte dos Conselhos.

Assim, por meio do que foi exposto, tendo o máximo de respeito as decisões do Supremo Tribunal Federal (STF), e reconhecendo a importância deste órgão para a promoção da justiça em nosso país, o Conselho Regional de Psicologia – Minas Gerais se posiciona contrário e vê com grande preocupação a devida decisão do julgamento, ainda que reconhecida a sua legitimidade para fazê-la. Acreditamos que tal decisão traz um impacto sem precedentes para o exercício legal da profissão, além de colocar em risco a sociedade no que tange o devido cuidado com os instrumentos de diagnóstico/avaliação psicológica, ao equipará-los a materiais didáticos e de informação científico-filosófico, e vai na contramão do que acontece em outros países.

No livro Avaliação Psicológica – Aspectos teóricos e práticos, Manuela Lins e Juliane Borsa trazem na Tabela 1 os níveis de qualificação para utilização dos testes no contexto norte-americano, traduzido por Urbina em 2014. Seguimos na colocação do voto do ministro Fachin “… Assim, para os efeitos da presente ação direta, tão relevante quanto a prevenção de diagnósticos infundados é a preservação da integridade dos testes. É por essa razão que associações profissionais de psicólogas(os) efetivamente recomendam a restrição de acesso.

A Sociedade Australiana de Psicologia, por exemplo, afirma que “os materiais de teste podem ser considerados documentos isentos [da responsabilidade de revelação de informações na medida em que a revelação seria contrária ao interesse público e quando: a) invalidar a utilidade do teste ou testes na prática psicológica; b) impedir os psicólogos de desempenhar suas funções; c) constituírem quebra do contrato para o qual os psicólogos recebem os materiais de testes” (Diretrizes Éticas para Avaliação Psicológica e para o Uso de Testes Psicológicos, p. 148). A Associação Americana de Psiquiatria obriga que os psicólogos “façam esforços razoáveis para manter a integridade e segurança dos materiais de teste e de outras técnicas de mensuração, consistentes com a lei e com as obrigações contratuais, e de forma com que se adéque a este Código de Ética”, item 9.11. do Código de Ética (VANDERPOOL, Donna. Requests for Disclosure of Psychological Testing Information . In: Innovations in Clinical Neuroscience, 2014, Nov. Dez., tradução livre). As mesmas diretrizes são também seguidas por outras entidades profissionais.

A Resolução objeto desta ação direta adere, portanto, a uma orientação que está relacionada à comunidade científica que utiliza os testes psicológicos como instrumentos de avaliação. Como se depreende de suas diretrizes éticas, a obrigação de sigilo visa resguardar a integridade do teste. A restrição de acesso prevista pela Resolução é condição necessária para a integridade do teste , como instrumento próprio de avaliação psicológica, atividade privativa dessa classe de profissionais. Para que haja verificação das respostas às mesmas questões (diagnóstico), é preciso que apenas as pessoas habilitadas a interpretá-las tenham acesso aos quesitos que, como frisado, não variam. Assim, talvez mais adequado seja comparar a reserva de acesso com a inviolabilidade do escritório ou local de trabalho, bem como dos instrumento de trabalho dos advogados (art. 7º, II, da Lei 8.906/94). A proteção conferida a eles pela lei é justificada pela necessidade de se preservar o sigilo profissional, instrumento indispensável para o desempenho da função de advogado. Daí porque ter afirmado o psicólogo Paul M. Kaufmann o seguinte: “Reconhecer o privilégio legal de não revelar os materiais dos testes psicológicos a não-psicólogos garante a integridade no serviço para nossos clientes, promove a função de busca pela verdade do Poder Judiciário, protege a profissão e presta um serviço ao público”. (KAUFMANN, Paul. M. Protecting Raw Data and Psycological Tests from Wrongful Disclosure: A Primer on the Law and Other Persuasive Strategies, The Clinical Neuropsychologista, 23:7, 1130- 1159, p. 1155, tradução livre). Poder-se-ia, no âmbito legislativo, debater se a realização desses testes como instrumento de avaliação psicológica é, de fato, eficaz. Admitir-se, porém, o acesso irrestrito a esses materiais compromete a integridade dos testes e os fragiliza como instrumento de diagnóstico.

Ademais, porque são testes internacionalmente padronizados, a consequência prática de eventual ampliação por meio de decisão do Supremo Tribunal Federal poderia ser, na prática, impedir que os brasileiros tenham acesso a eles, uma vez que as obrigações éticas de guarda de sigilo são requisitos que permanecem impostos às pessoas que os desenvolveram nos seus respectivos países de origem. Com essas considerações, entendo proporcional a compatível com a Constituição Federal a restrição imposta pela Resolução n. 2/2003 do Conselho Federal de Psicologia. É, pois, constitucional a norma impugnada nesta ação direta.

 

Belo Horizonte, 11 de março de 2021
XVI Plenário do Conselho Regional de Psicologia – Minas Gerais

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