19 out Carta aberta em defesa dos princípios da Educação Inclusiva nas escolas brasileiras
Brasília, 2 de outubro de 2023
Considerando a defesa incondicional dos princípios da Educação Inclusiva como direito conquistado e sustentado pela atual Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva/PNEEPEI (2008), manifestamos nossa preocupação e contraposição com: o encadeamento de projetos de Lei que se avolumam exponencialmente em diversos estados e municípios brasileiros que visam implementar a figura de um assistente terapêutico (AT) nas escolas, somado à indicação compulsória do método ABA (Análise do Comportamento Aplicada) a ser adotado por esse profissional; a tentativa de alterar a Política Nacional de Educação Inclusiva, em caráter de urgência, por meio do PL 3035/2020, de relatoria do deputado federal Duarte Jr (PSB); a ostensiva divulgação, pela imprensa, de narrativas de violência a estudantes com deficiência em ambiente escolar. Todos esses aspectos sugerem um ataque à Escola, enquanto instituição, à pessoa com deficiência, tomada como objeto-parte nas negociações no Legislativo, e uma alienação quanto às condições materiais impostas às escolas brasileiras (vide relatório da COMEX/MEC/2021), que impedem ou dificultam a construção de um ambiente inclusivo, hospitaleiro, acolhedor para todas as crianças, não apenas para estudantes com deficiência.
O discurso alarmista sobre a necessidade de incluir novos profissionais nas redes de ensino que atuem a partir de abordagens clínicas, e não educacionais, desrespeita a Constituição Federal e o Estatuto da Pessoa com Deficiência (13.146/2015), que definem o modelo social de deficiência como paradigma para a implantação de políticas públicas no Brasil. O modelo social, afirmado pela Convenção Internacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência (ONU/2006), e incorporado ao arcabouço legal brasileiro como emenda constitucional (Decreto 6949/2009), deixa no passado o modelo biomédico centrado em ‘diagnóstico’ e ‘abordagens terapêuticas’ e convida à compreensão do autismo e outras experiências lidas como transtornos do neurodesenvolvimento como um modo de habitar o mundo.
Causa indignação que o Congresso Nacional, quando discute Educação, esteja abrindo espaço para discursos que preconizam o viés terapêutico e de adequação comportamental, de base capacitista, e que o faça de forma aligeirada, em desacordo com os princípios democráticos, a partir de discurso de profissionais e empresários do campo da Saúde e advogados, e não de professores, pesquisadores do campo da Educação e usuários dos serviços da escola pública. Do mesmo modo, os posicionamentos dos Ministério da Saúde, Ministério da Educação, Ministério do Desenvolvimento Social e Ministério dos Direitos Humanos, bem como outros entes do Executivo, têm se revelado ineficientes neste enfrentamento, o que fragiliza ainda mais as condições de luta e de vida das pessoas com deficiência, aprofundando desigualdades inclusive na disputa das políticas públicas.
Os argumentos utilizados para a implementação do AT sugerem controle de comportamento de estudantes autistas, considerados desafiadores aos ambientes e ideais corponormativos. Outro aspecto que chama a atenção é a imposição de uma abordagem terapêutica, o ABA, em ambiente escolar, compulsoriamente atrelada à implementação da figura do AT nas escolas, o que ultrapassa limites éticos importantes no trato da coisa pública, posto que é uma abordagem de altíssimo custo que se impõe como única alternativa para dar conta das mais diversas demandas das pessoas que estão no espectro do autismo, o que fere a autonomia da aplicação de saberes dos profissionais, a necessária pluralidade de abordagens no campo da saúde e retira a liberdade de escolha da criança, de suas famílias, dos profissionais e até mesmo da escola.
A articulação entre os campos da Saúde e da Educação é necessária para ampliar o cuidado às pessoas com deficiência na direção da oferta de apoios para a eliminação de barreiras ao desenvolvimento de sua autonomia e participação na sociedade. Entretanto, não são métodos e técnicas que devem guiar o poder público na elaboração de ações e programas, mas políticas que garantam a distribuição equânime do cuidado. Deve haver respeito aos marcos legais que fundamentam as políticas públicas, os princípios e as diretrizes que orientam a estruturação do Sistema Único de Saúde/SUS e a organização das redes de ensino no país, com garantia de investimento de recursos materiais, humanos e financeiros, que não sobreponham os campos e que estejam orientadas a partir dos saberes geopoliticamente constituídos.
Destacamos a necessidade de considerar todo o arcabouço normativo que compõe a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva, o que inclui as Notas Técnicas e Resoluções do Ministério da Educação, que já prevêem o Serviço do Profissional de Apoio para aqueles estudantes que possuem necessidades relacionadas à alimentação, higiene, locomoção e comunicação, para além dos cuidados já oferecidos aos demais estudantes. Grifamos, aqui, que o cuidado faz parte do mandato da Educação, sendo também atribuição educativa no espaço escolar.
Defender a hipótese de que o assistente terapêutico teria competência diferenciada para lidar com estudantes públicos da Educação Especial é presumir incompetência em relação ao trabalho dos professores. Esta premissa perverte a institucionalidade da escola, buscando transformá-la num espaço de clínica-escola, a serviço de interesses privados e corporativistas e não do interesse público, e destituindo crianças com deficiência de seu lugar de estudante para impor a eles o lugar de paciente.
Propostas de intervenção terapêutica na Educação, tais como as verificadas nestes projetos de lei, desconsideram que comportamento e aprendizagem são produções coletivas e culturais, e devem ser abordadas e experimentadas no campo pedagógico e educativo. A escola não deve ser ocupada por funções periciais e de rastreamento de comportamentos ditos desviantes, nem se ocupar do controle dos corpos, a fim de homogeneizá-los e normalizá-los.
É preciso, ainda, salientar que, embora haja larga produção acadêmica investigando o uso do ABA, há grande diferença entre os contextos onde eles são testados (em populações específicas e diferentes das brasileiras) e os desfechos esperados após a sua aplicação ainda são modestos se pensamos em situá-lo como a única ou principal abordagem a ser utilizada no Brasil. Abordagens comportamentais podem compor uma gama de ofertas de abordagens e metodologias já ofertadas pelas redes de atenção e saúde no Brasil, desde que observem os princípios éticos. E nesse ponto a nossa preocupação ecoa o que a Resolução 706 (A-23) de junho de 2023 da Associação Médica Americana divulgou em nota recente (REF) quando faz extenso levantamento bibliográfico do uso do ABA. Esse relatório aponta para uma série de efeitos nocivos e consequências danosas de longo prazo para adultos que foram submetidos ao método em sua infância. O caráter ‘normalizador’ – em regime intensivo – de muitas abordagens comportamentais produz ainda mais exclusão e sofrimento para crianças e adolescentes com deficiências no contexto escolar, ao invés de proporcionar pertencimento e protagonismo. Lutamos para que todo e qualquer método a ser proposto como política pública deva partir do respeito inegociável aos princípios do Estatuto da Criança e do Adolescente, da Lei de Diretrizes e Bases da Educação e do SUS.
Nesta direção, cumpre-nos destacar também a Nota Técnica 98378, do Conselho Nacional de Justiça, em relação à proposta de adoção do método ABA. O CNJ avaliou evidências sobre a eficácia e segurança de tecnologia em questão e, concluiu textualmente que: “Os estudos que avaliaram a eficácia dessa forma de tratamento são de baixa ou muito baixa qualidade metodológica, estando sujeitos a inúmeros vieses, o que impossibilita sustentar a sua eficácia. Ademais, o comparador desses estudos foi tratamento usual em escola da rede pública ou orientação dos pais, de maneira que não é possível estabelecer a superioridade do método ABA em relação a outras abordagens psicopedagógicas, como as terapias já oferecidas por nosso sistema de saúde.”(grifo nosso)
Por fim, reiteramos que a articulação entre os setores deve garantir que a vida de pessoas com deficiência e suas comunidades prospere, e que a relação entre os campos da Educação e da Saúde é parceria primordial para tais finalidades, sem qualquer intencionalidade de inserirmos na escola um funcionamento de instituição totalizadora.
Diante do exposto, pedimos a atenção, o empenho e o compromisso de parlamentares, Ministérios da Educação, Saúde, Desenvolvimento Social e Direitos Humanos, secretários de Educação, da Saúde, dos Direitos Humanos, defensores e promotores públicos, sindicatos dos professores, associações, coletivos e movimentos sociais de pessoas com deficiência, pesquisadores do campo da Educação Inclusiva, professores e profissionais da Educação, e, destacadamente, do presidente Lula, no sentido de retomar os princípios da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva Inclusiva (PNEEPEI 2008), a fim de fortalecê-la e consolidá-la em todo o território nacional, e conter as ameaças de retrocesso e de exploração econômica da deficiência. Essa é a resposta firme e comprometida com os direitos já conquistados que a sociedade reivindica.
Assinam essa carta:
Abraça (Associação Brasileira para Ação por Direitos das Pessoas Autistas)
Ambulatório de Transtorno de Aquisição de Linguagem (TAL) Fonoaudiologia / UFRJ.
Arvorecer – saúde mental de crianças, adolescentes e jovens
Associação Brasileira de Saúde Mental (ABRASME)
Associação de Surdos do Agreste Meridional de Pernambuco (ASAMPE)
Associação Internacional Maylê Sara Kali
Associação Militância Cores da Resistência / Guaranhuns
Avante – Educação e Mobilização Social
Centro Internacional de Estudos e Pesquisas sobre a Infância (CIESPI)
Coletivo Internacional Amarrações
Coletivo Ranúsia Alves da Marcha Mundial das Mulheres (Guaranhuns/ PE)
Conselho Regional de Psicologia de São Paulo ( CRP / SP)
Conselho Regional de Psicologia – Minas Gerais (CRP- MG)
Conselho Regional de Psicologia do Rio de Janeiro (CRP / RJ)
Coordenação de Assuntos Comunitário da Universidade Federal do Agreste de Pernambuco
Criola
Departamento de Terapia Ocupacional da Universidade Federal do Espírito Santo
DESPATOLOGIZA – Movimento pela Despatologização da Vida Especiais da Maré
Grupo de extensão e pesquisa “Trajetos: cotidianos e acompanhamento em saúde mental de crianças, adolescentes e sua comunidades” (UFES)
Grupo Tortura Nunca Mais
Fórum de Educação Infantil do Distrito Federal
Fórum Permanente pela Educação Inclusiva do Espírito Santo
Grupo de Estudos e pesquisas sobre avaliação, educação popular e escola pública (UFF)
Grupo de Pesquisas “Currículos cotidianos, redes educativas, imagens e sons” (UERJ)
Grupo de Pesquisas “Políticas, práticas educacionais cotidianas e o direito à Educação” (UNESA)
Grupo de Pesquisas “Subjetividades e processos de desenvolvimento dos povos amazônicos” – Faculdade de Psicologia/ Universidade Federal do Amazonas
Grupo Tortura Nunca Mais / RJ
Instituto Cáue
Instituto Paulo Freire
Instituto Viva Infância
Instituto Vladimir Herzog
Instituto Saúde Coletiva Universidade Federal da Bahia
Laboratório de Estudos e Pesquisas em Ensino e Diferença (LEPED / Unicamp)
MST – regional Agreste Meridional de Pernambuco
Movimento Surdo Agreste
Núcleo de estudos e pesquisas em inclusão (NEPI / UFMS)
Núcleo de Estudos em Educação e Diversidade (UFAL)
Rede Nacional de Pesquisas em Saúde Mental de Crianças e Adolescentes
Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial (RENILA)
Serviço Psicologia Escolar IPUSP
UNEAFRO Brasil
Sindicato dos Psicólogos no Estado de São Paulo (SINPSI)
Trajetos (DTO/UFES)
Vidas Negras com Deficiência Importam (VNDI)