16 jul Especificidades ético-técnicas no atendimento às Juventudes (crianças e adolescentes)
O Setor de Orientação e Fiscalização (SOF) do CRP-04 recebe dúvidas diversas das psicólogas, de todas as áreas e campos de atuação da psicologia. No decorrer dos anos foi possível identificar temas mais recorrentes para fins de registro e mapeamento das principais demandas. Considerando as especialidades da psicologia, profissionais que atuam na “Psicologia Clínica” são as que mais buscam orientação. Sobre os temas, “elaboração de documentos psicológicos” aparece quase sempre como o mais frequente, mas destacam-se outros relevantes: atribuições da psicóloga e limites de atuação; sigilo e quebra de sigilo; demandas do judiciário; atendimento a crianças e adolescentes. Esses temas muitas vezes se relacionam, e, para o que nos interessa no presente artigo, destaca-se que grande parte das dúvidas das psicólogas clínicas que atendem crianças e adolescentes estão relacionadas à elaboração de documentos, situações que envolvem o judiciário e/ou a quebra de sigilo e/ou à dúvidas sobre os limites de atuação da psicóloga. Diante disso, o SOF apresenta algumas orientações pertinentes sobre esse assunto.
Para início de conversa
As crianças e adolescentes têm direito à saúde, o que pode incluir, a depender do caso, acesso à serviços psicológicos. Ao iniciar a prestação de um serviço psicológico, exceto aqueles que sejam eventuais (por exemplo: acolhimento pontual, plantão psicológico, dentre outros), a crianças e adolescentes (menores de 18 anos), a psicóloga deve possuir a autorização, por escrito, de ao menos um responsável legal. Pode acontecer de um responsável legal autorizar e o outro se opor a determinada prestação de serviço psicológico, e não seria falta ética a psicóloga manter o atendimento nestes casos, porém tal situação cria um impasse na condução do trabalho e a(o) profissional deve refletir sobre os possíveis desdobramentos. Pode haver ainda situações em que um cuidador que não possui a guarda formal leve a criança para atendimento – uma avó, por exemplo. Então, é necessário que a(o) psicóloga(o) busque sempre a autorização de um responsável legal (mesmo que ele não vá participar diretamente do atendimento). Caso contrário, oriente o cuidador a buscar regularizar a situação. Ainda, caso os responsáveis legais neguem o acesso da criança ou adolescente ao serviço psicológico quando esse é necessário, é orientado que a(o) profissional busque as entidades cabíveis, como o Conselho Tutelar.
Informações sobre o serviço psicológico
É amplamente difundido que a(o) psicóloga(o) deve guardar sigilo sobre as informações que recebe na prestação de serviços psicológicos. Todavia, quando o usuário do serviço é uma criança ou adolescente, podem surgir dúvidas sobre quem tem direito às informações sobre os atendimentos e sobre o quanto a psicóloga pode falar sem quebrar o sigilo. Nesse sentido, quem tem direito às informações sobre os atendimentos psicológicos são aqueles de direito, ou seja, apenas os responsáveis legais pela criança/adolescente, sendo que devem ser compartilhadas somente informações estritamente necessárias para que possam ser promovidas medidas em benefício daquela criança ou adolescente. É importante destacar também o direito da própria criança ou adolescente de receber informações sobre seu tratamento, intermediadas pelos responsáveis legais. Desse modo, é respeitado o direito do paciente à privacidade e, ao mesmo tempo, são evitadas negligências em relação ao cuidado daquele usuário. Isso vale para os contatos verbais, documentos psicológicos e prontuários, entre outros.
Quem são os responsáveis legais?
A responsabilidade legal obriga a assistência, sendo o seu detentor encarregado por lei por aquela criança ou adolescente. Inicialmente, tal conjunto de direitos e deveres fica designado aos pais, que possuem naturalmente o poder familiar e guarda sobre a criança. No entanto, mudanças podem reconfigurar esse cenário. Nesse sentido, a guarda legal é uma das medidas que legaliza a permanência de crianças ou adolescentes a pessoas ou instituições, obrigando à prestação de assistência material, moral e educacional aqueles que a possuem. Independente da forma de guarda estabelecida, ambos os cuidadores mantêm preservado o poder familiar, ou seja, têm dever e direito de supervisionar a saúde psicológica dos filhos, podendo solicitar informações que afetem o tema. Vale destacar que a guarda é uma coisa, o poder familiar é outra. A perda do poder familiar se dá apenas quando houver determinação judicial específica sobre isso.
Comunicações por escrito
A(o) psicóloga(o) tem o dever de fornecer os documentos psicológicos decorrentes do serviço psicológico prestado para aqueles de direito. O que será elaborado, bem como seu conteúdo,
devem ser definidos pela(o) profissional com base no tipo de trabalho realizado e na ciência psicológica, não devendo ceder a pressões dos usuários, especialmente caso a demanda esteja além do que a(o) psicóloga(o) possa ou deva afirmar a partir dos seus critérios éticos e técnicos.
“A(o) psicóloga(o) deve atuar com autonomia intelectual e visão interdisciplinar, potencializando sua atitude investigativa e reflexiva para o desenvolvimento de uma percepção crítica da realidade diante das demandas das diversidades individuais, grupais e institucionais, sendo capaz de consolidar o conhecimento da Psicologia com padrões de excelência ética, técnica e científica em favor dos direitos humanos.” Resolução CFP 06/2019, que deve ser consultada no caso de dúvidas sobre elaboração de documentos psicológicos.
Aqui é importante ressaltar a diferença de um documento de uma(um) psicóloga(o) clínica que está na assistência da criança de um documento pericial, que deve ser produzido pela(o) psicóloga(o) perita(o) ou pela equipe do sistema judiciário designada para tal. Portanto, o conteúdo do documento da(o) psicóloga(o) clínica não poderá ter o teor pericial que visa subsidiar a decisão do juiz. Cabe à(ao) profissional manejar tais demandas em sua relação com o paciente e com os pais, visando não prejudicar o serviço prestado.
Atenção! O SOF com frequência recebe denúncias e questionamentos de pais que tiveram o seu pedido de documento negado pela psicóloga. Como exposto acima, a guarda unilateral de um dos pais não retira o direito do outro a informações sobre o tratamento do filho, uma vez que o que determina esse direito é o poder familiar. Portanto, orienta-se que não devem ser negados documentos pertinentes aos responsáveis legais.
Quando entregar o documento, a(o) psicóloga(o) deve colher um protocolo de entrega deste, com assinatura do responsável legal, e anexá-lo ao prontuário psicológico. Desse modo, resguarda-se de que foi realizada a entrega do documento psicológico e que o solicitante se responsabiliza pelo uso que fizer dele a partir de agora.
Prontuário psicológico
É direito dos responsáveis legais o acesso e até mesmo a cópia de prontuário psicológico, e, considerando isto, a(o) psicóloga(o) tem que estar bastante atenta na elaboração desse registro para não expor desnecessariamente o seu paciente. Cabe ressaltar a importância de, sempre que solicitadas informações por um responsável legal que não detém a guarda da criança/adolescente, seja informado àquele que detém a guarda sobre o repasse de tais informações.
Quebra de sigilo
Todas as comunicações informadas acima, se realizadas da forma orientada, não constituem, ainda, quebra de sigilo profissional. No entanto, quando há alguma situação que justifique a quebra de sigilo, como a suspeita de alguma violência/abuso, a(o) psicóloga(o) deve tomar as medidas necessárias, estabelecidas pelo Estatuto da Criança e Adolescente, realizando as notificações e encaminhamentos pertinentes. Ainda assim, a quebra de sigilo se restringe ao estritamente necessário para que os outros atores do Sistema de Justiça tomem as medidas cabíveis.
Notificação compulsória
Com objetivo de estudar a distribuição dos fenômenos de saúde/doença e definir políticas públicas necessárias, as autoridades sanitárias definem algumas comunicações que devem ser realizadas pelas(os) profissionais da saúde. No caso das juventudes, devem ser notificados: casos de violência doméstica ou extrafamiliar, de violência sexual, de violência autoprovocada (tentativa de suicídio), tráfico de pessoas e trabalho infantil. Cabe destacar que situações de violência autoprovocada e de violência sexual a notificação deve ser imediata, ou seja, no prazo de até 24h, para que possam acontecer as intervenções adequadas em tempo oportuno (ex: medidas de contracepção de emergência, encaminhamento para os serviços de atenção psicossocial). Por se tratar de notificação epidemiológica, que tem encaminhamento interno na Saúde Pública, essa notificação não quebra o sigilo profissional.
Encaminhamentos
Há também a necessidade de informar o Conselho Tutelar sobre suspeita ou confirmação de violência contra crianças/adolescentes. Essa é uma comunicação externa/denúncia, que implica na quebra do sigilo profissional. Nesse sentido, cabe às(aos) psicólogas(os) buscar promover a interrupção do ciclo de violências, o que pode ser feito de preferência, e quando possível, com o envolvimento da família, que poderá buscar diretamente os órgãos responsáveis (Conselho Tutelar, Polícia) com a devida orientação das profissionais. Lembrando que em casos de quebra de sigilo, a(o) psicóloga(o) deve compartilhar apenas o estritamente necessário.
Depoimentos no judiciário
Como mencionamos, psicólogas(os) que atuam com o público infanto-juvenil frequentemente recebem demandas que têm interface com o sistema judiciário, como solicitações de depoimento ou testemunha, e ficam em dúvida de como proceder. A primeira situação possível é a convocação judicial por meio de um Mandado de Intimação Judicial, sendo a(o) psicóloga(o) obrigada(o) a comparecer perante a autoridade, mesmo que para apresentar justificativa de que não pode fornecer informações, seja em respeito ao sigilo profissional ou por não ter condições técnicas para tal. No entanto, podem haver também convites de uma das partes interessadas para que a(o) psicóloga(o) seja testemunha e, nesse contexto, cabe à(ao) profissional a decisão sobre a quebra do sigilo, embasando sua decisão na ética, técnica e legislação profissional, bem como na busca pelo menor prejuízo.
Atendimento a familiares
Não é incomum que alguns pais desejem ser atendidos pela(o) mesma(o) psicóloga(o) que atende sua(seu) filha(o), ou que desejem que a(o) mesma(o) psicóloga(o) atenda irmãos. Nesses casos, a(o) profissional deve refletir e decidir sobre a viabilidade do atendimento, considerando se o vínculo a ser estabelecido poderia interferir negativamente no serviço psicológico prestado. Recomenda-se evitar atender concomitantemente pessoas da mesma família com laços próximos, em atendimento/psicoterapia individual (ou seja, exceção à terapia familiar), pois é possível que acabe gerando alguma interferência negativa no processo. Isso não significa que a(o) psicóloga(o) não possa ter momentos e intervenções com os pais e/ou outros familiares, devendo estar bem delimitado para os envolvidos que não se trata de um processo distinto. É importante também que a(o) profissional avalie as necessidades dos envolvidos, encaminhando para outros profissionais ou outros tipos de intervenções, sempre que se fizer necessário (por exemplo, encaminhar para uma psicoterapia familiar).
O atendimento das juventudes é um campo atravessado por complexidades que convocam a atenção da(o) psicóloga(o). O CRP 04, por meio do SOF, coloca-se à disposição para orientar. Sempre que necessário, não hesite em nos contatar.