Nota de posicionamento: Programa Primeira Infância no SUAS

O Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) vem, por meio desta nota, manifestar sua discordância do Programa “Criança Feliz”, lançado no dia cinco de outubro de 2016, a partir do Decreto 8.869/2016 – programa este que foi gestado por um governo que alcançou o poder sem um processo eleitoral, e sendo assim, com uma plataforma política que não foi debatida com toda a sociedade.

O Programa “Criança Feliz” foi apresentado por Marcela Temer como sua embaixadora e representa a tradição das primeiras damas em criarem programas concebidos a partir de uma afetividade imaginária calcada na figura clássica da mulher como mãe, esposa, filha e, portanto naturalmente cuidadora. Não se baseia em teorias e métodos de trabalho consensadas pelas ciências e pelas profissões regulamentadas, banalizando a ciência e o trabalho profissional, a partir de uma simplificação que deixa transparecer suas concepções.

Compreendemos que “criança feliz” é criança que vive em famílias protegidas pelo Estado, com políticas públicas que apoiem sistematicamente sua capacidade de cuidado, por meio da oferta de políticas de Educação, Saúde, Assistência Social, Esporte, Cultura, Trabalho entre outras. Ampliar a cobertura destas políticas aumentando a oferta de pré-natal, creches, pré-escolas, Centros de Referencia de Assistência Social-CRAS, isto sim faria efeito para a felicidade destas crianças.
Desde seu lançamento, o CRP-MG tem discutido sobre sua implicação na Política de Assistência Social, a partir dos impactos que ele pode trazer para o seu público destinatário.

O CRP-MG entende que a Psicologia deve estar a serviço da sociedade, defendendo uma concepção de direitos na perspectiva da justiça social e, portanto, sua garantia deve estar expressa nas políticas públicas em serviços, programas e projetos que visem garantir o acesso equitativo de toda a população ao seu bem estar pessoal e social.

No Brasil, os direitos para todos ainda é promessa e toma contornos complexos devido à enorme desigualdade social existente no país: o discurso dos direitos se contrapõe ao peso da nossa herança em relação ao tratamento dado historicamente às crianças pobres e concorre, contraditoriamente, ao reconhecimento de outras representações sociais que diagnosticam a pobreza e, sobretudo a desigualdade social, como naturais ao processo de desenvolvimento do país, ou causadas por vontade própria da população. Por isto o CRP-MG se coloca ao lado das usuárias e usuários da política de assistência social na defesa de seus direitos.

Em 24 de novembro de 2016 o Conselho Nacional de Assistência Social aprovou as Resoluções CNAS, nº 19 e 20, que instituíram o Programa Primeira Infância, e validou os critérios de partilha para o financiamento federal do Programa no Sistema Único de Assistência Social (SUAS).

O CRP-MG vem tornar público sua posição a respeito destas Resoluções a partir dos questionamentos apontados abaixo:

1- O SUAS, ao priorizar a matricialidade sócio familiar como um de seus pilares, supera a concepção de focalização e segmentação da política social brasileira. Nessa proposta o Estado deve promover as condições necessárias para que a família cumpra seu papel de proteção e cuidado, a partir do desenvolvimento das suas potencialidades, do fortalecimento do protagonismo, da participação social e da construção coletiva de projetos societários que incluam mudanças na realidade onde vive. Esta concepção é concretizada no Serviço de Proteção e Atendimento Integral às Famílias (PAIF) e do Serviço de Proteção e Atendimento Especializado a Famílias e Indivíduos (PAEFI), que têm a atribuição de acompanhar as famílias em situação de vulnerabilidade e/ou violação de direitos, de forma integral e articulada. Esses objetivos podem ser constatados também no Serviço Famílias Acolhedores.
Acreditamos que a proposição de visitas familiares específicas aos objetivos do Programa Primeira Infância no SUAS, devido aos critérios de distribuição dos recursos, induzem à focalização e seletividade do acompanhamento de famílias no SUAS, e superpõe às atividades já realizadas pelos serviços, representando uma fragmentação de ações ancoradas em uma lógica já ultrapassada na política de Assistência Social de atendimento aos segmentos específicos.

2- O Programa prioriza em suas ações a atividade da visita familiar, como o principal instrumento de consecução de seus objetivos, facultando a contratação de profissionais de nível médio para esta função. Esta atividade é extremamente complexa e exige contornos muito bem estabelecidos para que não se torne um instrumento, policialesco e calcado em uma visão moralizante sobre as maneiras de se educar a população. Sabemos como a primeira infância das crianças pobres, através da puericultura foi tratada na história de nosso país de forma higienista, normatizadora, desrespeitando as particularidades e os contextos culturais e sociais das famílias, pressupondo que as mães pobres não sabem cuidar de seus filhos e que necessitam de orientações de como fazê-lo. Desta forma entendemos que as visitas familiares são parte de um processo de acompanhamento psicossocial das famílias e que não podem ser impositivas e nem compreendidas como uma atividade com fim em si mesma, devendo ser realizadas dentro de um processo mais amplo. Devem ser realizadas pelos profissionais de nível superior das equipes de referencias do SUAS, que contam com a orientação e fiscalização de seus respectivos Conselhos Profissionais.

3- Na Lei Orgânica de Assistência Social, em seus artigos 23 e 24 se estabelece que os serviços se constituam por atividades continuadas e os programas são ações integradas e complementares com objetivos, tempo e área de abrangência definidos para qualificar, incentivar e melhorar os benefícios e os serviços assistenciais. Desta forma, serviços e programas não têm a mesma função, sendo que os programas devem qualificar os serviços e não concorrer com os mesmos. Assim, reconhecendo a insuficiência da equipe de referência dos serviços socioassistenciais, em especial do CRAS e em consonância com a deliberação da X Conferência Nacional de Assistência Social pela revisão da NOB- RH, em rever a composição das equipes de referência dessas unidades, entendemos que a qualificação necessária está relacionada com o incremento da equipe de referencia sem fragmentação de seu trabalho.

4- O programa prevê a possibilidade de contratação de profissionais para visitas domiciliares, por meio de parcerias com entidades e organizações da Assistência Social. Entendemos que o grande avanço no SUAS se deve a criação do Centro de Referencia de Assistência Social (CRAS) e Centros de Referencia Especializados de Assistência Social (CREAS), como unidades públicas estatais responsabilizando o poder púbico em realizar a gestão da Proteção Social Básica e Especial de média complexidade, regulamentados pela NOB-RH SUAS com equipes de referências com acesso a cargos públicos no SUAS por meio de concurso público. Desta forma, consideramos que a abertura para contratação de profissionais por meio de entidades e organizações da Assistência Social precariza as relações de trabalho e significa um retrocesso na consolidação em curso do SUAS.

Pelos argumentos apontados acima, o Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais (CRP-MG) sugere que o Conselho Estadual de Assistência Social de Minas Gerais e os Conselhos Municipais de Assistência Social dos municípios mineiros não façam a adesão ao Programa Primeira Infância, da forma como o mesmo está apresentado nas Resoluções 19 e 20 do CNAS.

Belo Horizonte, 12 de janeiro de 2017.



– CRP PELO INTERIOR –