30 set Política de drogas: uma questão ideológica
Por Glauco Faria para a Revista Fórum
Como discutir um assunto cuja “verdade absoluta” vem sendo repetida há décadas e que representa interesses de todos os tipos, nem sempre os mais nobres? O tema da política de drogas no Brasil ainda está preso a uma visão repleta de estigmas e estereótipos, que faz com que as pessoas, de uma forma geral, enxerguem na repressão a única alternativa possível para lidar com a questão. Para o ex-secretário nacional de Justiça Pedro Abramovay, experiências como as previstas na recente lei uruguaia e em estados norte-americanos como Colorado e Washington podem trazer novos elementos para essa discussão. “Tem muita gente que não consegue pensar de outra maneira, que não consegue imaginar que é possível ter outro olhar sobre isso. Esse é um dos grandes problemas: o preconceito, que provoca o engessamento do debate público.”
Além de ter ocupado a Secretaria Nacional de Justiça, foi um dos coordenadores da Campanha do Desarmamento no governo Lula e titular da Secretaria Nacional Antidrogas no início do governo Dilma, saindo após ter defendido em entrevista, entre outros pontos, penas alternativas para pequenos traficantes. Hoje, é uma das principais vozes a favor de uma discussão racional a respeito da atual política de drogas, que, no seu entender, é algo que penaliza de forma direta os mais pobres. “Acho que aqui a gente precisa começar pela própria esquerda, que não percebeu que esse é um tema que lida com a desigualdade; a decisão de manter a criminalização do uso de drogas e pena de prisão para pessoas pegas com pequenas quantidades, que não cometeram nenhum tipo de violência, é uma decisão que afeta os pobres”, sustenta. “Estão prendendo a juventude pobre brasileira em função dessa ideologia de guerra às drogas. Acho que a gente precisa, na esquerda também, acordar.”
Na entrevista a seguir, Abramovay fala sobre experiências que estão sendo adotadas em outros países, localiza interesses de setores que não querem que o debate sobre política de drogas seja feito e também avalia o equívoco em se focar a internação como modelo quase único de tratamento para dependentes.
Fórum – O Uruguai aprovou na Câmara dos Deputados uma legislação que regulamenta a produção, a distribuição e o consumo de maconha, e outros também estão debatendo alternativas ao proibicionismo. O Brasil ficou um pouco para trás nessa discussão?
Pedro Abramovay – Certamente. Quem olhasse o Brasil há cerca de quatro anos diria que é um país que tinha avançado no ponto de vista interno, com posições ponderadas no ponto de vista externo. Porque a gente tinha uma reforma na lei que tirou a pena de prisão, pelo menos em tese, do usuário, e já tínhamos uma tradição de fazer redução de danos desde os anos 1980. Do ponto de vista interno, era um país razoavelmente avançado e, do ponto de vista externo, sempre defendeu que se tivesse a redução de danos como uma prática internacionalmente reconhecida, vinha criticando a guerra às drogas… Hoje em dia, o mundo inteiro avançou e reconhece o fracasso dessa guerra, e seu centro, que são os EUA, começa a ter várias mudanças na política de drogas, alguns estados utilizam a cannabis medicinal e outros regulamentaram o uso recreativo. O governo Obama faz algumas mudanças importantes: diminuiu a pena para o traficante de crack, que era uma pena absurda e, mais recentemente, orientou que o Ministério Público – que lá não é independente – não pedisse a prisão de réus primários que tivessem cometido crimes sobre drogas sem envolvimento com crimes violentos. Então, é uma mudança importante no contexto. Esse é o cenário internacional.
No Brasil, ocorre o contrário. A gente passa a discutir mais internação e repressão de usuários e não tem nenhum avanço contra esse tipo de mudança de legislação. Na prática, o país prende muitos usuários, apesar de a lei determinar que eles não podem ser presos. Muitos estão indo pra prisão, sobretudo os mais pobres. Mesmo com a América Latina inteira mudando o panorama e discutindo, o Brasil segue com um certo silêncio sobre o tema.
Fórum – Nesse sentido, o projeto do deputado Osmar Terra (PMDB-RS) está dentro desse quadro de retrocesso?
Abramovay – A internação compulsória tem sido condenada pela ONU como mecanismo, a internação em Centro de Tratamento não acontece em nenhum lugar, e é isso que o projeto faz, transforma o Centro na principal maneira de se tratar alguém. A internação tem milhões de problemas, enriquece muita gente, é cara e não é eficiente. E tem um efeito sobre as pessoas mais pobres porque se torna simplesmente uma maneira de internar a pobreza. Estamos indo nesse caminho em vez de pensar em tratamentos mais eficientes e baratos, que consigam lidar de maneira mais inteligente com essa tragédia que muitas vezes as drogas causam.
Fórum – Podemos dizer, grosso modo, que se criou uma indústria de internações, com muita gente interessada no aspecto econômico?
Abramovay – Com certeza. Essa indústria tem várias ramificações que mercantilizam o sofrimento das pessoas. Médicos que enriquecem com isso e vão para o debate público defender a internação do ponto de vista pseudocientífico, quando, na verdade, isso interessa a eles mesmos. Existem comunidades religiosas sérias, que têm papel importante, mas algumas que usam métodos absolutamente contrários aos direitos humanos, com denúncias sérias de tortura; e há ainda um terceiro tipo, que é muito pouco explorado, que são comunidades terapêuticas comandadas por policiais que, de certa forma, organizam a chantagem de pegar o usuário e levar para a comunidade terapêutica. Ao mesmo tempo, há uma pressão desses grupos sobre o Congresso e o governo para flexibilizar, para que não se precise de médicos. Realmente é uma alternativa que está longe de tratar e cuidar desse problema, mas sim de mercantilizar o sofrimento. Uma crueldade adicional é que a internação representa um alívio temporário para as famílias. Por mais que as chances de sucesso sejam baixas, naquele momento a família, que está passando por um momento terrível de dor, tem um alívio. Você seduz, engana com essa argumentação. É algo cruel essa indústria que se forma, se adota um discurso positivo, e o fracasso é computado como um fracasso da pessoa, e não do tratamento.
Fórum – Você esteve muito tempo no poder público e tratou dessa área. Além desses grupos de interesses econômicos diretos, onde estão os outros setores que têm mais resistência em relação a qualquer tipo de discussão de política de drogas no Brasil?
Abramovay – O problema é que existe uma verdadeira ideologia de guerra às drogas, construída há 50 anos. E, portanto, praticamente todas as pessoas que participam do debate público atualmente cresceram com essa ideologia. É muito difícil conseguir enxergar as coisas sob uma perspectiva diferente. Claro que existem interesses concretos, de pessoas que atuam para enriquecer, mas tem muita gente que não consegue pensar de outra maneira, que não consegue imaginar que é possível ter outro olhar sobre isso. Esse é um dos grandes problemas, o preconceito que provoca o engessamento do debate público.
Por isso que o discurso que Uruguai, Colorado e Washington estão utilizando é tão importante, pois é justamente a possibilidade de pensar diferente. Depois que a ideologia da guerra às drogas prevaleceu, nenhum país ousou regulamentar o uso de alguma droga que havia sido considerada ilícita. Toda a experiência que temos é a da proibição, do tratamento, da repressão. Pela primeira vez, vamos poder ver se há alguma alternativa melhor, e temos de olhar com muita atenção para isso, sem esses preconceitos para avaliar. Então, existem três barreiras: interesses econômicos; gente que sabe que isso não funciona, mas força esse sofrimento por votos; e esta ideologia construída: de guerra às drogas há 50 anos.
Fórum – Confunde-se muito a questão dos modelos. Uns legalizam o uso só da maconha medicinal; outros, como a Holanda, determinam o uso recreativo em espaços específicos. Hoje em dia, existe algum modelo que você considera ideal para idealizar um debate sobre drogas no Brasil?
Abramovay – Existem vários modelos e cada um está em momentos diferentes da história. Sabemos muito bem o que não dá certo, sem dúvida. O que não dá certo é a repressão, o encarceramento do usuário. A política de repressão às drogas foi tentada por muito tempo no mundo e em nenhum lugar a quantidade de droga consumida diminuiu. Há 50 anos, eles escolheram proibir no mundo inteiro e gastar todos os recursos possíveis para enfrentar isso por meio da repressão. Podia ter dado certo, mas 50 anos é o suficiente para sabermos que deu errado.
Há países que querem descriminalizar o consumo, sem tratar esse tema no âmbito penal. A ideia deste mito, de que descriminalizar aumenta o consumo, podia ser verdadeira, mas empiricamente a gente sabe que é mentira. Outros países testaram outros modelos. É o caso da Holanda, onde você podia chegar a comprar, mas o tráfico era proibido. E agora tem a novidade com Colorado, Washington e o projeto do Uruguai – que ainda não foi aprovado no Senado, mas está em vias de, que faz a regulamentação. O que esta por trás disso é controlar o consumo, não permitir ou incentivar o consumo.
Foi muito interessante a vinda do papa ao Brasil, que disse que alguns líderes sul-americanos estavam defendendo o uso livre de drogas. Não conheço ninguém que defenda. Aliás, conheço, a indústria de bebida alcoólica, que faz propaganda de drogas em eventos esportivos, uma droga tão pesada quanto o álcool. Muito mais utilizada e muito mais danosa. O que se quer, no caso da regulamentação da cannabis, é controlar esse uso. Hoje se tem o uso livre, se compra onde quiser e se fuma a hora que quiser. O intuito é controlar e separar os mercados.
Muitas pessoas dizem que a maconha é a porta de entrada para outras drogas. Esse é um dado questionável. Existe pelo menos uma pesquisa, feita na Nova Zelândia, que chegou a uma conclusão. Como o próprio autor da pesquisa explica, como não tem nenhum componente químico que faça essa ponte, surge outra hipótese. O fato de a maconha ser vendida pela mesma pessoa que vende outras drogas atrai o usuário que não teria nenhum motivo em ter interesse por uma droga que tem o efeito contrário, como a cocaína, por exemplo. A pessoa que está vendendo maconha vai, de alguma maneira, te induzir ao uso das outras drogas. Isso é dito no programa do Uruguai, eles não querem que a juventude se aproxime dos traficantes e de quem está vendendo crack. E eles falam que não sabem se vai dar certo, mas sabem que do jeito que está hoje está errado, e essa ousadia para tentar o novo é algo fundamental.
Fórum – Muitas legislações já abordaram a questão do uso da maconha e em relação a outras drogas. Você acha que poderia ir para outro caminho ou a ênfase na educação, em campanhas de conscientização seriam mais interessante do que a proibição? Qual é a sua opinião?
Abramovay – Devemos ter dados empíricos e ir trabalhando com isso, se a gente puder avaliar o que o Uruguai está fazendo e ver qual o significado disso, se vai aumentar o consumo ou não, o que vai acontecer com o consumo de outras drogas… Talvez essa não fosse, fazendo aos poucos, a melhor estratégia, mas uma vez que isso está sendo feito, a gente precisa aproveitar disso para ir medindo. Talvez, se a gente liberar algumas drogas, drogas muito pesadas como o crack, se tenha um controle mais efetivo.
Vou dar um exemplo, durante muito tempo o absinto foi proibido, e era uma proibição bastante efetiva, mas por quê? Porque o consumo de álcool era permitido. Quando você diminui a quantidade e realmente foca naquilo que é muito grave, a chance de se controlar é maior. Então, acho que esse é o caminho, mas temos de avaliar, temos de ter dados concretos e ir avaliando. Não se pode ter medo de errar, o que a gente sabe é que hoje o consumo de drogas sintéticas e o consumo de cocaína, trazem danos que são muito maiores, muitas vezes, do que a própria substância psicoativa, porque não se consegue regulamentar isso. Ter controle, regulamentar é sempre positivo, vamos ver se a cannabis vai aumentar ou diminuir o consumo.
Fórum – Ou seja, a gente pode dizer que, contrariando a ideia de que a maconha é a porta de entrada para outras drogas, na verdade a criminalização das drogas é que é a porta de entrada para outras tantas?
Abramovay – Com certeza.
Fórum – Você acha que, em termos de políticas públicas, o foco está equivocado aqui no Brasil, ou seja, a gente deveria, por exemplo, ter uma atenção com mais enfoque na questão da saúde pública do que na repressão?
Abramovay – Acho que tem dois lados: primeiro, como eu disse, temos uma legislação que não coloca nenhuma clareza em quem é o traficante e quem é o usuário. O usuário não vai ter pena de prisão, mas para saber se a droga é para uso pessoal, você vai avaliar: condição social, o local, a quantidade, mas não fala a quantidade. Mas, no fim das contas, quem avalia é o policial.
Fórum – Como a gente chegou à formulação da lei e não definiu isso? Não se previa que poderia chegar a esse tipo de situação?
Abramovay – Claro, algumas pessoas diziam que não, porque estavam colocando alguns critérios, não pode engessar, se colocar uma quantidade, vai ter traficantes usando pequenas quantidades. E esse modelo, por exemplo, de usar quantidades para separar, é usado em muitos países do mundo, na Inglaterra, em vários estados americanos, australianos, no México. Mas aqui no Brasil, as pessoas têm medo de fazer isso, porém teria de se fazer porque, quando o critério é subjetivo, o que acontece é que o critério objetivo é: se é pobre, é traficante; se é rico, é usuário. O tratamento que a gente dá para o usuário pobre de droga, muitas vezes, é a cadeia; se mora em um lugar que é sabidamente de crime organizado, então, pronto, encarcera.
Primeiro, tem esse ponto, porque se está colocando na prisão gente que não tem ligação com o crime organizado, que nunca cometeu nenhum crime, e que depois de passar pela prisão não vai ter opção a não ser se ligar ao crime organizado. Porque não vai ser empregado por ninguém depois que sair e vai criar esse vínculo lá dentro. Não só não diminui a violência, como gera mais violência. Do outro lado, pensando na área de saúde mesmo, o problema que a gente tem é que cada vez mais se quer colocar a internação como o centro da política. Qual é o problema? A internação compulsória tem uma taxa de eficiência que varia, mas quem é otimista fala em 5% de sucesso. Obrigar alguém a fazer um tratamento que tem 95% de chance de dar errado é uma coisa que não faz nenhum sentido. Mesmo no caso da internação não compulsória, as taxas são um pouco melhores, mas ainda são muito baixas. E é claro que há casos de internação necessária, como aquelas feitas muitas vezes em períodos curtos, de dias, para desintoxicação. Se o problema da droga fosse meramente químico, seria fácil, se resolveria com remédio ou com desintoxicações simples.
A questão é que não é, o problema de abuso, da dependência, nasce a partir da relação da pessoa com a droga e com o meio em que ela vive. Por isso existem pessoas que consomem drogas das mais pesadas a vida inteira sem se tornar dependentes e as que, consumindo drogas em situações muito mais tranquilas, acabam se tornando. A internação parte do princípio de que o problema está relacionado quase a um efeito mágico da droga. A pessoa é internada, vai ficar um tempo lá e, naquele contexto, vai parar de usar, mas na hora em que voltar para o exato ponto em que estava, tentando lidar com os problemas que a levaram a usar a droga, vai usar novamente, e por isso a reincidência é tão grande. Os tratamentos que funcionam são aqueles que tratam a pessoa em liberdade, que a ensinam a conviver em um mundo no qual a droga existe, mas que ela não vai usar. Esse tratamento é longo, penoso, a pessoa vai passar por altos e baixos, tem, sim, muitas recaídas, mas é muito mais eficiente, mais barato e sustentável. E a gente tem investido muito pouco em consultórios de rua, tratamento ambulatorial. No discurso público, a internação ganhou uma centralidade que só se justifica por essa indústria da internação que a gente comentou antes.
Fórum – E tem essa questão da família, que você mencionou, que às vezes tem um dependente e não tem informação, apoio. Falta assistência também para essas famílias?
Abramovay – Com certeza falta, tem de dar apoio para as famílias, tem de dar instruções, tem de ensinar como lidar, as pessoas não sabem e não se preocupam com isso. Quando se discute qual governo fez mais hospitais, quantos leitos criou… Não é nem de longe o leito o mais importante para uma política de tratamento de um usuário de droga. A não ser que se tenha a internação como única solução, aí sim só se vai pensar em leitos.
Fórum – No Brasil, tanto falando de administrações de hoje como no passado, você acha que teve alguma que foi bem-sucedida em termos de política de drogas, dentro do limite dessa camisa de força?
Abramovay – Acho que existem experiências municipais muito interessantes, por exemplo, em São Bernardo do Campo, que tem feito coisas muito legais, a região do ABC paulista… Existem experiências localizadas, uma experiência de tradição importante está em Salvador, com consultórios de rua, lá tem lugares que têm feito coisas interessantes no Brasil. Mas não tem uma política nacional que induza as cidades e os estados a seguirem este tipo de política.
Fórum – Como você avalia o papel da mídia, hoje, sobre esse tema?
Abramovay – A mídia mudou muito e atribuo isso basicamente à entrada do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso no debate e à relação que ele tem com grandes órgãos de mídia. Fez com que hoje O Globo, por exemplo, tenha uma posição bastante progressista. Você vê em editoriais de jornais, também, a Folha de S.Paulo tem uma posição progressista, o Estado de S.Paulo já teve uma posição mais conservadora. Acho que a grande mídia no Brasil – apesar de, claro, ainda ter a espetacularização desse sofrimento que alimenta a ideologia da guerra às drogas – é muito diferente do que era quatro, cinco anos atrás. Existe debate sobre o tema, mais vozes. Antigamente, uma voz contrária a essa lógica de guerra era massacrada, e isso não acontece mais. Temos evoluído nesse sentido da possibilidade de debate.
Fórum – Em relação, novamente, à questão da legislação, vemos que o governo federal tem muita dificuldade, muitas vezes cede demais em relação ao Congresso em vários temas que são ditos polêmicos, mas que deveriam ser essenciais, como o combate à homofobia e uma série de outras questões. Dentro dessa configuração do poder político, com esse Congresso atual, com bancadas conservadoras e um Executivo que age pouco nessa área, é possível que a gente consiga algum avanço nos próximos anos?
Abramovay – Minha maior esperança de avanço vem do Supremo Tribunal Federal (STF). Existe uma ação, um recurso extraordinário que está no STF, que questiona a constitucionalidade da criminalização do consumo. Existe uma carta assinada por sete ex-ministros da Justiça, entregue ao relator Gilmar Mendes, pedindo que o Supremo declare a inconstitucionalidade, e acho que tem chances de isso acontecer. Se o STF fizer isso, vai ter de se reformular a lei, e aí talvez o Congresso seja obrigado a enfrentar o tema de outra maneira. Mas tirando isso, é muito difícil ver hoje uma possibilidade de o Brasil ficar mais alinhado ao debate.
Fórum – E pede a inconstitucionalidade com base em que argumento?
Abramovay – São muitos, desde o argumento da liberdade individual, o fato de o Estado não poder legislar sobre a autolesão, não poder criminalizar a autolesão, já que nem tentativa de suicídio é punida. Mas o consumo de drogas ainda é considerado um crime, então existe aí algo que se relaciona sobre qual o limite do Estado de interferir nas decisões que afetam fisicamente as pessoas. Se a pessoa utilizar drogas e praticar um crime, tudo bem. Mas se ela não fez nada, só consumiu, isso não poderia ser criminalizado. E essa é uma discussão que já aconteceu em tribunais constitucionais de vários países, como Argentina, Colômbia, na Espanha. O Brasil não seria pioneiro.
Fórum – Você falou também da mudança da mídia quando o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso trouxe isso à baila. Existem, hoje, pessoas, entidades, que já reviram também sua posição a respeito, ou seja, mesmo tendo uma visão de mundo conservadora de forma geral, perceberam que essa guerra às drogas não funciona…
Abramovay – No mundo, há muitos casos, existem hoje setores importantes no Partido Republicano americano que veem pelo lado de que o Estado não pode intervir na vida privada, e outros que percebem que está muito caro e a conta não fecha, não querem mais pagar o custo dessa história. Tem também a revista The Economist, que também não é uma publicação de esquerda.
No caso brasileiro, depois da entrada do ex-presidente no debate, alguns atores novos estão discutindo o tema. Acho que aqui a gente precisa começar pela própria esquerda, que não percebeu que esse é um tema que lida com a desigualdade, a decisão de manter a criminalização do uso de drogas e pena de prisão para pessoas pegas com pequenas quantidades, que não cometeram nenhum tipo de violência, é uma decisão que afeta os pobres. Estão prendendo a juventude pobre brasileira em função dessa ideologia de guerra às drogas. Acho que a gente precisa, na esquerda também, acordar.
Fórum – A política de drogas hoje pode ser definida como uma política de criminalização dos pobres?
Abramovay – Sem dúvida, acho que é isso. Nos Estados Unidos, esse debate é mais claro, o movimento negro lá, há muito tempo, questiona a legislação sobre drogas, são eles que estão nas campanhas, junto com os movimentos sobre liberdades civis. Aqui, o que muitas vezes parece ser um tema mais de classe média, não é. A gente não está falando do direito da pessoa em fumar maconha, está falando do fato de que estamos encarcerando pessoas pobres em massa no Brasil.
Fórum – Esse debate não é feito na esquerda por pura desinformação ou por medo?
Abramovay – Acho que é uma desinformação conveniente.
Fórum – Que tipo de projetos temos hoje no Legislativo que podem trazer algum tipo de avanço nessa caminhada de políticas de drogas?
Abramovay – Existe todo um debate sobre a descriminalização, feito pelo deputado Paulo Teixeira (PT-SP), que tem levantado essa questão, apesar de não ter apresentado nenhum projeto; alguns senadores também têm debatido, e acho que esse é um bom começo. Mas temos de manter o olho aberto para as coisas que estão acontecendo no resto do mundo e, sobretudo, temos de conseguir frear esses avanços conservadores que colocam o Brasil na contramão completa do que o mundo está fazendo nesse tema, como o projeto do deputado Osmar Terra.
Fonte: site da Revista Fórum
* Esta matéria faz parte da edição 126 da revista Fórum