Seminário aborda fragilidade do atendimento de saúde à população trans

O seminário “Identidades Trans e Políticas Públicas de Saúde: Contribuições da Psicologia”, realizado na quinta-feira (14/3), em São Paulo, traçou um panorama importante sobre o nível do atendimento psicológico às travestis, transexuais e transgêneros na rede pública de saúde. A necessidade de mudanças por meio do acolhimento adequado, com orientação e um olhar voltado para a despatologização da transexualidade foi unanimidade entre os representantes das entidades que compuseram a mesa de abertura e a maioria dos participantes.

A transmissão do debate rendeu aproximadamente 700 pontos de acesso de internautas. Cerca de 50 pessoas foram ao auditório do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo (CRP-06) conferir o evento. A iniciativa foi uma parceria entre o Conselho Federal de Psicologia (CFP), do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo (CRP-06) e do Espírito Santo (CRP-16), a partir de uma deliberação da última reunião de presidentes de Conselhos Regionais, realizada em dezembro de 2012.

Na abertura, o presidente do CFP, Humberto Verona, ressaltou que a Psicologia tem o desafio de garantir à população trans o respeito à dignidade e o acesso aos serviços públicos de saúde. “Faz parte da nossa obrigação combater todas as formas de discriminação e retrocesso no reconhecimento de todas as sexualidades. Precisamos retirar o estigma de que essa orientação configura uma doença”, observa.

De acordo com a vice-presidente Trans da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT), Keila Simpson, em relação à identidade trans, o Brasil é semelhante a outros locais da Europa, como Estocolmo e Barcelona. “A realidade deles é a mesma nossa. Não existe inserção trans, parece que é uma população invisível”, destaca. “É um tema que precisa de visibilidade por parte da sociedade, e a Psicologia pode auxiliar nisso”, completa a secretária executiva do Fórum de Entidades Nacionais da Psicologia Brasileira (Fenapsi), Fernanda Magano.

Durante a cerimônia de abertura, o presidente da Associação Brasileira de Homens Trans (ABHT), Leonardo Tenório, entregou ao presidente do CFP um ofício solicitando uma regulamentação técnica recomendando que o profissional de Psicologia preserve o direito e a autonomia dos transgêneros. “Não é papel do psicólogo (a) opinar sobre mudança de sexo. Os homens trans não vão à psicoterapia, porque a terapia compulsória é absurda nesses casos. Não vamos representar um gênero que não concordamos”, argumenta.

A ausência da representante do Ministério da Saúde, que estava prevista no debate, foi repudiada pelos palestrantes e pelo público presente. O foco das reclamações foi a reformulação da Portaria n.  457/2008, que estabelece diretrizes para o processo transexualizador, elaborada sem a contribuição da Psicologia e dos movimentos sociais envolvidos com o tema.

Atendimento

O debate sobre a forma como a população trans está sendo atendida pelos psicólogos nas unidades de saúde também foi pontuada no debate. Segundo a psicóloga e professora do curso de Psicologia da Fundação Educacional de Penápolis, Sandra Spósito, as concepções médicas que regem o Sistema Único de Saúde não respeitam a diversidade de gênero, apenas como uma situação patológica, ao invés de proporcionar uma ação voltada para saúde mental dessas pessoas.

Na opinião da psicóloga doutora Tatiana Lionço, que pesquisa questões relacionadas aos direitos humanos e sexuais, a avaliação psicodiagnóstica atual viola a autonomia do sujeito ao considerá-lo de forma patologizante. “É uma identidade adquirida, onde a pessoa tem autonomia para se identificar como homem ou mulher, sem obedecer a ordem binária”, esclarece. “Para uma avaliação correta, seria preciso avançar na capacitação dos profissionais, especialmente aqueles que atuam nos Centros de Referência”, completa.

A despatologização da identidade trans é um procedimento que consta em documentos internacionais, como o Guia de Boas Práticas para a Atenção Sanitária a Pessoas TRANS, da Espanha. A expectativa, segundo Lionço, é que, em 2015, na revisão da classificação internacional de doenças, a Organização Mundial de Saúde também adote este mesmo conceito em relação ao tema.

Procedimento cirúrgico

Os critérios de entrada e indicação de pessoas para a cirurgia de mudança de sexo são discutidos por equipes multiprofissionais formadas por psicólogos, psiquiatras e assistentes sociais. O processo de avaliação psicológica leva, em média, dois anos para ser concluído. É um período difícil, onde muitos chegam sem querer fazer o atendimento e outros desistem no meio do processo. Os motivos vão da abordagem dos profissionais até a demora para a realização do procedimento cirúrgico, cuja fila de espera é enorme na rede pública.

No ambulatório do Hospital das Clínicas de São Paulo, por exemplo, cerca de 600 pessoas aguardam para realizar a avaliação com intuito da redefinição de sexo. “Aproximadamente 70% do público é composto por mulheres trans”, conta a psicóloga Judit Busanello, uma das psicólogas do local. O centro clínico realiza 12 cirurgias por ano.

Além do tempo de espera, o tratamento dos profissionais é um fator negativo para aqueles vão às unidades de saúde em busca de atendimento. Foi o caso do enfermeiro Edu*, nome social escolhido por ele, que é homem trans. “Foi um choque. Fui destratado e a assistente social marcou uma consulta com uma psiquiatra quatro meses depois da minha visita. Quando fui atendido, a médica me deconsiderou e fazia perguntas grosseiras acerca da minha sexualidade. Parecia um alistamento, e não acolhimento”, indigna-se.

Limites da Psicologia

Conforme a psicóloga Daniela Murta, doutora em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UERJ), a atividade psicológica precisa de uma uniformidade na prática. “Não temos que fazer diagnóstico nem avaliação, temos que acolher e orientar. Nosso dever é promover a saúde e a atenção àqueles que procuram auxílio nos centros de referência”, analisa.

Nesse sentido, o psicólogo do Centro de Referência e Treinamento DST/Aids, Ricardo Barbosa, acredita que entender a questão da transexualidade requer o reconhecimento de um sujeito de grupo. “A autenticidade das pessoas trans não têm lugar na sociedade. Assistimos um acúmulo dessas relações psiquicamente politraumáticas na recontrução de estigmas”, frisa. Se a gente, enquanto psicólogo (a), não reconhece os danos em termos de proposta e prática, acaba por produzir um trabalho que aliena o sujeito, insinuando que o gênero é diagnosticável.

Em relação aos limites e possibilidades da Psicologia em sobre a identidade trans, a psicóloga, psicanalista e doutora em psicologia clínica pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), Patrícia Porchat,  ressaltou que, em um primeiro momento, a psicanálise deve ser posta em contato com a realidade trans e ser questionada sobre a construção de gênero em geral.

“O primeiro limite de atuação do psicanalista é a concepção do que significa o outro. É importante essa noção de sujeito para despir os preconceitos, as crenças”, diz Porchat. “Acreditar apenas no masculino e feminino engessa o pensamento para trabalhar com identidades trans. A Psicologia deve construir uma forma de desmontar isso na cabeça das pessoas, o que simboliza um novo e contínuo trabalho”, finaliza a psicóloga.

Nota técnica

O seminário fornecerá subsídios para uma nota técnica que será coordenada pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP), com a participação dos Conselheiros Regionais de Psicologia,  consultores ah doc e movimento social. O objetivo é construir diretrizes éticas e técnicas à categoria sobre o processo transexualizador e sobre as questões da transexualidade. “É importante que o CFP e os CRPs saibam orientar sobre esse procedimento nas identidades trans no exercício da profissão”, constata o presidente Humberto Verona.

Além do seminário e da nota técnica, outras iniciativas virão, como a  construção  de um série de vídeos sobre a Psicologia e as sexualidades. O objetivo é potencializar a reflexão da profissão com as questões que envolvem as sexualidades na perspectiva dos Direitos Humanos.

Fonte: site do CFP



– CRP PELO INTERIOR –