Entrevista: 10 de outubro convida todo o planeta a refletir sobre a saúde mental

Conselheira presidenta do CRP-MG pontua os desafios da luta antimanicomial

No último sábado, 10, foi marcado o Dia Mundial da Saúde Mental – data instituída em 1992, pela Federação Mundial de Saúde Mental. Os problemas relacionados à saúde mental são considerados pela Organização Mundial de Saúde (OMS) uma prioridade em função dos próprios números apurados por ela e divulgados em paho.org: quase 1 bilhão de pessoas vivem com transtorno mental, 3 milhões de pessoas morrem todos os anos devido ao uso problemático de álcool e uma pessoa morre a cada 40 segundos por suicídio, em todo o mundo. Neste ano, OMS e a Federação estão recomendando um aumento maciço de investimentos no setor também em função dos impactos da pandemia da Covid-19.

No Brasil, o tema vem sendo discutido com rigor entre psicólogas(os) e demais profissionais de saúde envolvidas(os) com a pauta, desde a criação do Sistema Único de Saúde (SUS) e da instituição da Reforma Psiquiátrica. O 10 de outubro convida todo o planeta a refletir sobre a saúde mental e um dos pontos importantes para a Psicologia e para a sociedade é a luta antimanicomial.

Para entender com mais profundidade a questão, a conselheira presidenta do Conselho Regional de Psicologia – Minas Gerais (CRP-MG), explica, em entrevista, alguns pontos fundamentais da Reforma e da Luta Antimanicomial.


Mesmo diante de conquistas históricas por meio da Reforma Psiquiátrica, você concorda que o espectro dos manicômios ainda ronda a saúde brasileira?

Neste ano, a Organização Mundial da Saúde e organizações parceiras, como a Federação Mundial de Saúde Mental, reforçam a necessidade do aumento maciço nos investimentos em serviços públicos de saúde mental, incentivando a ação pública em todo o mundo. A realidade de cada rede necessita de um projeto inserido na comunidade e aumento de recursos públicos para esta rede.

Precisamos continuar com a desconstrução deste modelo asilar e combater a cada dia o manicômio em suas várias formas, do hospital psiquiátrico à comunidade terapêutica, incluindo o manicômio judiciário. É imperativo reafirmar que uma sociedade sem manicômios é uma sociedade democrática, uma sociedade que reconhece a legitimidade do outro como o fundamento da liberdade para todas e todos. É evidente que estas defesas sociais e humanas não encontram ressonância em outras defesas existentes dentro de corporações que sempre elegeram o encarceramento como forma de tratamento; diga-se de um suposto tratamento.

 

A política pública nacional conhecida como Reforma Psiquiátrica, sustentada na Constituição Federal e em leis nacionais – Lei Federal nº8.080 de 19/09/90, Lei Federal 10.216 de 06/04/2001 e, em Minas, da Lei Estadual 11.802 de 18/01/1995 – não existiria sem o Sistema Único de Saúde? E como ela está neste momento?

Fundamental ressaltar a importância da Psicologia neste contexto, pois ao longo das décadas nossa profissão vem sendo convocada a defender a(as) política(as) pública(s) de saúde e segue reafirmando seu compromisso com a universalidade do SUS como resultado do processo democrático. A Psicologia no Brasil foi uma das profissões presentes na construção da Reforma Sanitária e tem atuado pela consolidação de uma Reforma Psiquiátrica Antimanicomial. A porta de entrada das psicólogas e dos psicólogos no SUS está associada à reforma psiquiátrica.

A reforma psiquiátrica existe porque existe o SUS e obviamente graças à luta de muitas pessoas, o modelo de cuidado e assistência em saúde mental mudou muito no Brasil, estes avanços conquistados estão inscritos e aconteceram num contexto mais amplo como o importante protagonismo dos movimentos sociais ligados à luta antimanicomial.

O momento atual é de retrocessos na democracia, nas políticas públicas e na reforma psiquiátrica antimanicomial. Estamos vivendo certamente um momento difícil na luta pela utopia de uma sociedade sem manicômios; estes retrocessos não ocorrem dissociados do contexto político pelo qual atravessa nosso país.

É inaceitável este ataque à reforma Sanitária e à reforma psiquiátrica, e se estende a toda luta por direitos, democracia, respeito e dignidade das pessoas; conhecemos a dívida histórica deixada pelos hospícios, lugares de tortura, segregação, onde muitas pessoas passavam e perdiam suas vidas num completo abandono.

 

Um dos pilares da reforma, da luta antimanicomial é a participação dos usuários na produção do cuidado. Como se dá esse modelo até hoje?

O movimento da Reforma Psiquiátrica com sua luta corajosa e incansável tem seu reconhecimento legítimo do Controle Social do SUS, onde 50% são representantes de usuárias e usuários do Sistema. Há mais de 30 anos esta luta, a reforma psiquiátrica antimanicomial, se tornou um espaço forte e comprometido que cresceu em abrangência e profundidade e tem um traço singular e importante, que é a participação dos usuários e familiares nos processos decisórios. Precisamos reafirmar que uma sociedade sem manicômios é uma sociedade democrática, uma sociedade que reconhece a legitimidade do outro como o fundamento da liberdade para todas e todos. Precisamos reafirmar a cada instante que nossa luta é pela transformação das relações entre a sociedade e a loucura. Lutamos pela mudança do modo de organização social que exclui e anula seres humanos. Lutamos pela inclusão das diferenças e pela garantia dos direitos a uma vida digna.

 

Porque muitos governos não defendem a ampliação de serviços de saúde mental nos territórios de base comunitária e de cuidados diários, próximos das residências dos usuários e familiares, conforme preconiza a Organização Mundial de Saúde?

Estamos falando de governos atuais onde o desmonte estrutural do papel social do Estado é evidente e agressivo. Neste cenário é importante citar a Emenda à Constituição EC 95, que congelou os gastos públicos para as despesas primárias por um período de 20 anos; dentre as políticas sociais que estão sob ataque destacamos o Sistema Único de Saúde. O grave retrocesso aumentará as iniquidades e provocará estrangulamentos no acesso a bens e serviços de saúde, dificultando a efetivação do direito à saúde no Brasil.

O foco atual da política nacional de financiamento da saúde mental contraria a cronologia, os preceitos do modelo psicossocial e das reformas sanitária e psiquiátrica, e vem ocorrendo sem qualquer discussão prévia com o conjunto dos atores que atuam no campo no país, bem como sem a avaliação e aprovação do Conselho Nacional de Saúde. Um desfinanciamento acompanhado de deslocamento dos já parcos recursos para a sustentação da rede de atenção psicossocial para dispositivos privados de internação de médio prazo, com características manicomiais e de violação e direitos; muitos deste serviços de natureza lucrativa ou ligados a entidades religiosas, que colocam suas práticas confessionais específicas como principal recurso de intervenção.

Precisamos financiar dispositivos públicos, serviços de base territorial e comunitária, diversificando as estratégias de cuidado, estratégias que reconhecem a participação e controle social de usuárias, usuários e seus familiares.

 

Para encerrar, você poderia comentar sobre o fechamento dos leitos do Hospital Galba Veloso, em Belo Horizonte?

O debate não é sobre o fechamento de um hospital, mas o fechamento dos leitos psiquiátricos e a necessária garantia dos direitos humanos. Importante ressaltar a concordância do fechamento do Galba enquanto Hospital Psiquiátrico e defender sua requalificação para atender uma outra especialidade. O hospital é um lugar de tratamento, mas não para o sofrimento mental. Defendemos os leitos de saúde mental em hospitais gerais e os dispositivos de acolhimento, cuidado e tratamento em serviços da rede substitutiva.

A Política Estadual de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas de outubro/2016, aprovada em Comissão Intergestores Bipartite e pelo Conselho Estadual de Saúde, preconiza que o cuidado em saúde mental deve ocorrer nos serviços substitutivos, e resolução do Conselho Estadual de Saúde aponta ainda que os serviços devem ser 100% públicos estatais, inseridos na comunidade, dentro das políticas de redução de danos, das diretrizes do SUS e da reforma psiquiátrica antimanicomial.

Seguimos com o lema ‘Nenhum passo atrás, manicômios nunca mais’. Não se pode negar a legitimidade desta causa.



– CRP PELO INTERIOR –