Antirracismo e políticas públicas: psicóloga aborda temática em entrevista para o Conselho

Profissional psi reitera a importância de abordar o racismo durante todo o ano

O Conselho Regional de Psicologia – Minas Gerais ouviu a psicóloga Poliana de Oliveira Pinto, em conversa especial sobre o Novembro Negro – ação que tem por objetivo dar visibilidade à interseção entre questões étnico-raciais e a Psicologia.

A profissional é graduada em Psicologia (Centro Universitário UNA), pós-graduada em Intervenção Psicossocial no Contexto das Políticas Públicas pela mesma instituição, mestranda em Psicologia Social (UFMG). É membro do Comitê Gestor da Rede de Enfrentamento à Violência Contra a Mulher da Região Metropolitana de Belo Horizonte e gerente do Programa Mediação de Conflitos na Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública de Minas Gerais (SEJUSP/MG).

Como a intervenção psicossocial, como um processo que visa aumentar a capacidade de desenvolvimento das pessoas e da comunidade, pode contribuir para a efetivação de ações antirracistas, nas políticas públicas?

Compreendemos que as políticas públicas são programas desenvolvidos pelo estado para garantir e efetivar os direitos previstos dentro da Constituição Federal. A intervenção psicossocial possibilita melhores condições humana e de qualidade de vida, visa facilitar o bem- estar, mapeando as necessidades do indivíduo e da comunidade. Penso que a intervenção psicossocial é uma ferramenta importante na luta antirracitsa, pois atua para e com a comunidade. Promovemos a escuta e compreendemos os marcadores de opressão, que criminalizam e excluem certos grupos sociais. Tais análises são fundamentais para propormos ações assertivas para o enfrentamento ao racismo e nos responsabilizarmos dentro desse processo, sejamos nós pessoas negras, não negras, atuantes dentro das políticas públicas e a sociedade civil. Precisamos de uma Psicologia que se comprometa com a efetivação e com a garantia dos direitos e que luta pelo combate da discriminação racial.

Como a categoria Psi acredita que as metodologias escolares possam ocorrer de maneira mais concreta e precisa nesta luta?

Acredito que para a efetivação da Lei 10.639, de 2003, no ensino fundamental e médio, é necessário que professores e demais atores, que atuam no âmbito escolar compreendam a importância de se discutir a história e a cultura afro-brasileira dentro das escolas. Entendendo que a escola não está separada do contexto social, que os processos de desigualdade e exclusão são respingos da nossa história escravocrata e que a instituição escolar tem um papel importante para o enfrentamento ao racismo e também na luta antirracista. Sabemos que a história da população negra é invisibilizada nos livros didáticos porque são pautados pelo saber ocidental, ignorando a luta da população negra por cidadania. Como bem disse Abdias Nascimento: “Retornar ao passado para ressignificar o presente e construir o futuro” . O epstemicídio além de provocar o apagamento dos acontecimentos tornam a nossa memória sobre nós mesmos falsificada. Lembro dos escritos da professora Rosa Margarida Carvalho – especialista em estudos africanos e afrobrasileiros, mestre em educação -, que traduzem a importância da oralidade passada de geração a geração e fortalecem uma herança cultural como um suporte inspirador para as práticas educativas, com vistas ao aprendizado mais humanizante para todes. Ou seja, observar como é o processo de ensinar e aprender na perspectiva da tradição oral que ocorre dentro das comunidades tradicionais afro-brasileiras e extrair os ensinos pedagógicos no diálogo da educação formal. A escola tem papel comunitário e precisa constantemente dialogar de formas horizontais com os saberes tradicionais dentro de território de atuação, além de pensar em ações conjuntas para visibilidade da história e cultura afro-brasileira, dentro, mas também fora do ambiente escolar.

Estamos lutando pela implementação da lei 9.335 que coloca a(o) psicóloga(o) e a(o) assistente social na rede básica de ensino. Você acredita que a presença da(o) profissional psicóloga(o) no âmbito escolar vai propiciar metodologias escolares antirracistas mais efetivas ?

Tenho a certeza que sim. É de suma relevância a atuação de psicólogas, psicólogos e psicologues dentro do ambiente escolar, porque entendemos que o contexto social não está separado da educação. Creio que é uma análise psicossocial: o sujeito constrói e ao mesmo tempo é construído pelo seu contexto social, como muito bem disse Silva Lane. Então é importante que esses atores estratégicos estejam presentes dentro desse ambiente escolar para discutir tais questões como também o contexto que jovens, adolescentes e crianças estão inseridos. É pensar o enfrentamento às violências e as formas de emancipar essas pessoas. Sabemos que a escola tem um papel importante na questão do abuso contra crianças e adolescentes.

A presença se torna essencial para uma construção de um trabalho assertivo. Vejo a escola como algo que não é separado do contexto social. Ela pertence aos moradores e à comunidade que está inserida. É preciso fazer com que as famílias também se responsabilizem e entrem dentro do diálogo com a escola. Acredito que a ponte que a Psicologia pode fazer é de suma importância para esse trabalho.

Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontam que 72,9% de pessoas negras estão desempregadas do país, de acordo com a PNAD Contínua 1º/2020. Como a Psicologia pode auxiliar nas discussões para que sejam traçados métodos que visem a inserção massiva de pessoas pretas no mercado de trabalho e as garantias individuais?

Primeiro temos que olhar para a base desse problema, para além do acesso à empregabilidade formal: é preciso atentar para os processos que levam à evasão escolar porque, segundo pesquisa realizada pelo IBGE, em 2020, muitos pontos para o abandono são a necessidade de trabalhar, cuidar de um membro familiar e a realizar tarefas domésticas. Lembrando que as duas últimas questões recaem sobre as mulheres, devido os papéis sociais que nós somos colocadas diariamente. A grande maioria das pessoas que abandonam as escolas são pessoas negras. Lélia Gonzalez nos aponta a falta de efetivação desse direito que resulta em condições subalternas no mercado de trabalho e potencializa ainda mais o ingresso para o mercado de trabalho informal. Logo é de suma importância pensarmos na garantia dos direitos, trazendo um olhar interseccional para compreendermos que não somos seres universais e que as desigualdades e marcadores de opressão, como raça, sexo e classe entre outros atuam para a descrimininação dentro da nossa sociedade. É necessário pensar na garantir direitos olhando a particularidade de cada sujeito e a comunidade, asfaltando esse caminho com políticas públicas para que os direitos ditos universais possam ser efetivados na individualidade da população negra porque compreendemos que não é possível falarmos sobre as garantias, como abordado por Andreia Moreira Lima, em seu livro “Política Sexual: os direitos humanos LGBT entre o universal e o particular”, sem abordar os demais fatores. Temos que pensar nessa particularidade trazendo o conceito de feminismo negro e a interseccionalidade. Faz-se primordial observar todos os marcadores, tendo em vista que as violências são diversas e que para além das pessoas entrarem na escola, é preciso garantir que elas concluam o ensino, permaneça! Cabe analisar também o alcance de cursos profissionalizantes como outras ações como políticas afirmativas no ensino superior. Tais políticas foram um divisor de águas para nós como comunidade negra. Digo isso, pois sou prova desse alcance. É importante trilharmos esse caminho das políticas sociais para que de fato os direitos sejam executados.

De que forma as(os) profissionais psicólogas(os) podem contribuir no atendimento à população preta e periférica, sobretudo no período de pandemia, respeitando as singularidades e especificidades de mulheres e homens negros, tendo em vista que segundo dados de pesquisa realizada em 2018, pelo Ministério da Saúde, a probabilidade de suicídio de jovens negros é 45% maior do que entre jovens brancos na mesma faixa etária ?

É de extrema importância pensarmos na saúde mental da população negra e periférica que luta todos os dias contra a necropolítica. Nesse viés, para além dos dados do Ministério da Saúde, é preciso pontuar que somos 76,2% das vítimas de morte violenta intencionais no Brasil, além de sermos 66% da população em privação de liberdade segundo os dados do Conselho Nacional de Justiça. Tudo causado pelos atravessamentos, pelas diversas formas de racismo e pela pandemia, que potencializa ainda mais a desigualdade.

É preciso enfatizar que em quase dois anos de pandemia o Brasil lançou 40 novos representantes na lista de bilionários da Forbes. A lista contempla 39 homens e uma mulher branca. Em contrapartida, de acordo com a Comissão Parlamentar de Inquérito da Covid-19, a população negra foi a mais afetada. A falta de assistência reflete ainda mais as desigualdade sociais no país.

Pensando na atuação de nós, psicólogas, psicólogos e psicólogues, na promoção da saúde integral da população negra é míster atuar com o objetivo de reduzir essas desigualdades etnoraciais, combatendo a discriminação, enfrentando o racismo e sexismo dentro das políticas públicas. Precisamos ter o compromisso no atendimento humanizado do povo negro e com toda a rede de proteção, incluindo a saúde, além de atuarmos nas capacitações permanentes na promoção dos profissionais que estão inseridos dentro das políticas públicas. É importante que façamos ações em toda rede de proteção para que os jovens não cheguem ao auto-extermínio. É basilar que a rede de fato dialogue e comece a pensar ações para alcançar a juventude.

Quando falamos sobre a questão da saúde mental, existem estudos que abordam que a maioria das pessoas que utilizam medicações controladas são mulheres e pessoas idosas, principalmente mulheres jovens e mães solos, que precisam cuidar dos filhos e são cobradas socialmente em um ideal de mãe. Na temática que estudo que se refere ao encarceramento em massa de mulheres negras por tráfico de drogas e a relação do sistema de justiça penal, nota-se que dentro do sistema também ocorre da mesma forma.

No cárcere uma das demandas que mais acometem as mulheres são as medicações controladas. É preciso pensar na atuação da Psicologia no atendimento a elas para além da medicação: propiciar espaço de escuta ativa, de não julgamento e de acolhimento para que possam se expressar sobre os entraves e desafios que são colocados para elas, porque entendemos que pela sociedade racista, machista e misógina que temos, busca-se um ideal feminino que não é de uma mulher negra.

Como a população pode promover um combate a violação de corpos negros e como a Psicologia enxerga as ações de reivindicação dos direitos dos indivíduos?

Compartilho do ensinamento de Joseph-Achille Mbembe, que traz o conceito de necropolítica, no qual todos os dias certos grupos sociais são colocados em contato com a morte, a guerra, o homicídio e o suícidio, sendo essas situações constantes na vida da população negra. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, no primeiro semestre de 2019, o Brasil contabilizou um total de 3.005 pessoas mortas pelos agentes de segurança pública. No primeiro semestre de 2020 nós tivemos um aumento de 198 pessoas mortas e o perfil dessas vítimas são 79,1% de pessoas negras e 74,3% de jovens com até 29 anos. Estamos falando do genocídio da juventude negra. Pensando em como a população pode promover o combate a violação dos corpos negros, penso na Psicologia comunitária para discussão e enfrentamento da necropolitica, do racismo, das violências que perpassam a população e não-acesso ao direito. O protagonismo da comunidade é essencial para o enfrentamento das diversas formas de violência, sejam elas no campo público ou privado, fomentando uma rede de proteção, logo, um dos papéis importantes da Psicologia é potencializar os sujeitos autônomos e que eles transformem a partir disso, seu contexto social. Nós psicólogas, psicólogos e psicólogues nos colocamos como facilitadores nesse processo.

Qual a relevância de um enfretamento coletivo ao racismo, como a utilização de linguagem antirracista, o questionamento da ausência de representativiade preta e a realização de práticas que fomentem o protagonismo negro, para a construção de uma sociedade baseada na equidade? E como a Psicologia, enquanto ciência e profissão, ainda deve contribuir?

Nesse processo todes somos responsáveis na luta antirracista, pois compreendemos que o racismo perpassa a subjetividade das pessoas no âmbito individual e coletivo. O racismo nos atravessa diariamente. Atuar no seu enfrentamento e na sua estrutura é o nosso papel enquanto indivíduos dentro da sociedade brasileira. Como dito por Angela Davis, não basta não ser racista, é preciso ser antirracista. Para além de questionarmos a ausência de pessoas negras em espaços de poder é necessário traçarmos pontes para que cada vez mais possam alcançar esses lugares estratégicos. Por isso é necessário olharmos para a base, realizar a efetivação de políticas públicas e ter um olhar interseccional. É basilar que as pessoas negras e não negras se sintam responsáveis também por essa pauta. A discussão da branquitude é essencial na luta, tendo em vista que é uma forma de manutenção do poder e privilégios. Não podemos fechar os olhos para isso. Então nós, da Psicologia, seguimos pautando o nosso código de ética, atuando no enfrentamento ao racismo, contribuindo para uma sociedade justa, igualitária, com equidade e inclusiva. Uma Psicologia construída de forma horizontal para e com a comunidade.

É primordial pensarmos nessa pauta do Movimento Negro e as diversas temáticas que discutimos durante o ano todo e não somente em novembro. É preciso ocupar esses espaços estratégicos e trazer pautas diariamente.Seguimos resistindo e lutando!



– CRP PELO INTERIOR –