CRP-MG lança campanha “O cuidado ético de nós”

A partir deste ano o Conselho Regional de Psicologia – Minas Gerais (CRP-MG) elege temas organizados por mês para desenvolver algumas atividades como eventos e campanhas online. Em janeiro a temática é “O cuidado ético de nós”, fazendo uma evolução das ações de dezembro, que tinham como foco produzir uma interdição dos discursos de ódio que dominaram as relações interpessoais.

Durante este mês serão veiculados vídeos, programas de rádio, posts e a entrevista abaixo com a conselheira do CRP-MG, Mariana Tavares, coordenadora da Comissão de Psicologia e Clínica.

De que forma a Psicologia pode produzir o cuidado contrapondo o ódio às diferenças?

Lidar com as diferenças é um processo subjetivo, político e ético. O cuidado é um processo. Produzir o cuidado é estar o tempo todo alerta, consciente. É ir sempre na contracorrente. Estar posicionada(o) contra ódio. Estar o tempo todo atenta(o) à melhor de nossa própria ferramenta de trabalho: a produção de relações entre sujeitos.

É necessária a  delicadeza  de perceber  que o outro é tão outro para mim  quanto eu sou outro para ele . A ideia da Psicologia que se ocupa do cuidado é  fazer um exercício profissional que caminhe na produção de autonomia. O caminho é a delicadeza da inclusão. No caso, por exemplo, de uma unidade de saúde: não basta ser uma unidade de saúde, é preciso que ela seja inclusiva em várias esferas diferentes, na arquitetura, no modo de organizar seus processos de trabalho, no modo de produzir relações.

Essa cultura de ódio – que não surgiu agora no Brasil- mas que de um tempo  para cá, mais exatamente, no tempo em que houve mais políticas sociais inclusivas, é o ódio ressentido daquele que sentem ter perdido privilégios. É como se houvesse uma dívida de privilégios, que é o ódio por ter perdido poder. Não devemos responder ódio com ódio. Podemos responder, porque somos seres humanos e temos direitos. Mas se quisermos uma sociedade diferente teremos que dar respostas mais produtivas e mais qualificadas ao ódio. A proposta é então criar uma prática e uma política do cuidado. Ou criar numa utopia, a sociedade do cuidado.


O que mais podemos falar sobre esse termo “produzir o cuidado na Psicologia?”

O cuidado não é um dado, é um processo de produção. E para ser um processo de produção ele precisa criar uma espécie de contágio. Ele é um processo inacabado, sem garantias e tem que ser sempre se retroalimentar. Não existe em si. Não se dá de forma abstrata. Ele se dá com questões especificas e cuidados determinados e não um cuidado como palavra  de ordem. O cuidado tem que ser uma das categorias do planejamento.


Como corrigir a ideia que a Psicologia é o cuidado da saúde mental e não da saúde de forma integral?

Acho que é uma discussão sem fim de qual seria o campo da Psicologia. Ela pode ser vista como um método, como um modo de viver  a vida, como uma ética.

Estamos  aqui , neste momento numa produção coletiva , ainda que sejamos apenas  duas pessoas. Isso é uma qualidade da Psicologia. A Psicologia é a profissão da palavra, nossa técnica é a palavra. O que temos é a tecnologia da palavra, e confiamos tanto nisso, pois trabalhamos com  o cuidado como linguagem.

Precisamos estar atentos às críticas que são feitas ao trabalho do Conselho de Psicologia. Se elas sugerem que necessitamos nos afastar do campo dos Direitos Humanos para ser mais psicólogos e menos defensores dos direitos, é provável que estejamos frente a uma demanda de  “psicologização da realidade”. Se for o caso temos que ser intransigentes nesta posição de defesa dos Direitos Humanos, por ser esse o nosso campo ético.  Não devemos aceitar uma explicação psicológica para  algo que é da ordem do campo da política.

Há uma perspectiva teórica que entende que  a Psicologia trata de traumas, o que a afastaria da discussão  da violência. Se a Psicologia fecha os olhos para a violência que produz os traumas, ela se afasta de seu campo ético, tornando-se uma mera técnica.

Se você traz o sofrimento causado, por exemplo, por  homofobia para o campo do sujeito e a interpreta como trauma individual, isso é muito danoso, em termos éticos, pois perpetua a produção da autorização da homofobia.


Os Direitos Humanos começam com a igualdade. Mas o que temos, na verdade, é uma luta pela diversidade. O que dizer disso?

Direitos humanos tratam da igualdade. Mas, na verdade, lutamos pelo direito ao  diverso. Temos que ser capazes, sobre essa definição do igual, de fazer caber as diferenças. Para isso o conceito de equidade nas políticas públicas. Não é dar uma igualdade e oportunidades. É dar mais a quem precisa mais, ao sujeitos em situação de maior vulnerabilidade. A proteção da diversidade não pode romper o pacto da igualdade. O cuidado trata a diversidade na perspectiva da igualdade. Na ética dos Direitos Humanos, de que somos todos iguais, sujeitos de direitos. Precisamos lembrar que diverso é o outro de mim, mas não é de uma alteridade absoluta, de ruptura do pacto da igualdade.


Qual a diferença entre afeto e amparo?

Existe uma diferença entre afeto e emoção. Essa questão da psicoeducação, de você aprender a usar as emoções, você tem que ter consciência de si, capacidade de controlar Isso (“Isso” entendido aqui como a  parte de irracional, impulsivo, imediatista de nosso psiquismo). Ser capaz de controlar as emoções  não quer dizer domesticação dos sujeitos. Nesta perspectiva é preciso ser insistente em que uma Psicologia que cuida do diverso não dociliza nem domestica.

Podemos pensar em de uma forma tola que  o amparo e cuidado é o mais forte cuidando do fraco e assim, haveria uma verticalidade no cuidado. Temos que lembrar que todos nós somos sujeitos de desamparo e que isso que cria a comunidade humana. Nenhum de nós existe sem o amparo do outro. Nenhum de nós vive sozinho, ou como diria Leonardo Boff, “não temos cuidado, nós somos cuidado”.

Cuidado e amparo podem ser vistos como práticas e exercício de poder. E o que nos interessa é pensar o cuidado e amparo como práticas de inclusão.


Como a(o) psicóloga(o) pode cuidar de alguém que não quer amparo?

Existe  hoje  já uma síndrome que se chama Síndrome de Evitação, em que lidar com o outro é tão difícil que eu prefiro ficar sozinho. Isso pode gerar transtornos patológicos, inclusive de ódio. Qualquer intervenção no meu equilíbrio me gera um transtorno tão grande que eu prefiro me ausentar dessas situações que geram qualquer fricção humana. Bom, se essa pessoa me procurou meio caminho já está andado, porque ela me procurou. E aí então vai depender do manejo disso para não  ir além dos limites estabelecidos, e ao mesmo tempo propiciar uma relação que autorize ir além dos limites estabelecidos. Eu acho que pode ser um fenômeno da nossa sociedade contemporânea, dessa sociedade de ilhas, cada um em suas solidões. O que gera o silêncio em torno de si.

Ser normal é você ser capaz de instalar normalidades permanentemente. É você ser capaz de criar suas próprias normas. O que é uma política de cuidado? É você criar, aceitar, lidar, acolher, abrir espaço em que essas novas normas caibam. Isso é saúde.

Não podemos partir do princípio de que o cuidado é percebido pelo outro como benesse. A oferta de cuidado ao existir não precisa ser percebida como tal, quem recebe o cuidado não  tem que agradecer  isso, isso não precisa ser vivenciado por ele por uma coisa boa. É uma oferta cuidadosa. Não é um sistema de trocas na qual precisa ser recompensado.


O que dizer então da expressão “gentileza gera gentileza”?

Devemos perceber que é mais bacana ficar do outro lado. É muito melhor ser feliz e ser gentil. O espírito de gentileza foi definido na filosofia como em oposição ao espírito de instrumentalidade. A gentileza é uma forma de cuidado.


Para encerrar, de onde vem a obrigação de ser feliz?

A obrigação de ser feliz surge da sociedade de massa e consumo que criou o sujeito ideal. A essência desse sujeito ideal que é enquadrado dentro de uma propaganda de margarina. A obrigação de ser feliz vem do fato de que se você consome, vem de um determinado padrão, vem de determinados grupos e rituais, compra em determinada loja, você está feliz. A felicidade vem de uma definição externa de você como uma roupa como imagem. E isso é o ideal, porque você tem que ser feliz. A felicidade grega é a felicidade coletiva, política, não existe a felicidade do eu individual, isso veio do burguês, da revolução francesa. Isso do EU, nem sempre existiu, é novo. E essa percepção da felicidade individual, associada ao consumo, vem ao contrário, gerar um vazio enorme como exigência para o próximo consumo. É o comportamento da adicção.



– CRP PELO INTERIOR –