Desfile da luta antimanicomial denuncia retrocessos vividos no Brasil     

Na última sexta-feira, 18 de maio, a Escola de Samba Liberdade Ainda que Tam Tam percorreu as ruas do centro de Belo Horizonte com seu desfile/manifesto pelo fim dos manicômios e das práticas manicomiais.

Veja fotos do cortejo.

Na porta da Prefeitura de Belo Horizonte foi lido um manifesto que se dirige a toda classe política brasileira e denuncia retrocessos vividos nos níveis federal, estadual de municipal.

Um trecho do documento denuncia: “o cenário atual é inóspito para o Sistema Único de Saúde e para uma de suas mais belas conquistas, a Reforma Psiquiátrica brasileira. […] Mais recentemente, a vultuosa quantia de 87 milhões foi assegurada para implantação de leitos em comunidades terapêuticas, que hoje encarnam plenamente o  autoritarismo, a tutela e a exclusão dos manicômios”.

Veja o manifesto na íntegra:

ATENTAS E FORTES: TANTÃS SEM TEMER OS GOLPES

Há mais de 2 anos, desenrolam-se as tristes conseqüências do golpe contra a democracia brasileira. O impeachment da presidente eleita, cujo posto foi usurpado por seu vice; a PEC da morte, que congela os gastos com saúde e educação; a reforma trabalhista, que retira direitos históricos duramente obtidos, foram os primeiros passos. Tornou-se impossível mascarar a realidade do golpe, inequivocamente demonstrada, no início deste ano, pela ousadia de uma escola de samba carioca. Seu desfile trouxe à avenida um vampiro neoliberal com a faixa de presidente; paneleiros, manifestoches manipulados por mãos gigantescas; ao lado dos negros agrilhoados de outrora, os trabalhadores de hoje, escravos, uns e outros, da exploração do trabalho e da arrogância dos senhores.  E estas imagens, fortes e verazes, a Rede Globo, constrangida, teve de mostrar a todo o Brasil.

Entrementes, prosseguia o script do golpe. Findo o carnaval que o expôs ao ridículo, Michel Temer anunciou ao país a intervenção militar no Rio de Janeiro – estúpida medida, que pretenderia supostamente combater a violência criminalizando a miséria, violando direitos, humilhando e agredindo negros e pobres. Deste contexto, vieram os tiros que mataram Marielle Franco – a combativa vereadora negra que enfrentava os desmandos contra o povo favelado que era o seu.  Finalmente, após uma condenação sem provas, a prisão do ex-presidente Lula mostrou o verdadeiro propósito das ruidosas denúncias de corrupção tão exaltadas pela mídia: afastar das eleições o candidato do campo popular que maiores chances tinha de vencê-las.

Levando  ao retrocesso das políticas públicas e do reconhecimento de direitos, o cenário atual é inóspito para o Sistema Único de Saúde e para uma de suas mais belas conquistas, a Reforma Psiquiátrica brasileira. No final do ano passado, o Coordenador de Saúde Mental, Quirino Cordeiro Jr, impôs, sem argumentos nem debates, uma portaria que destina recursos a hospitais psiquiátricos, ambulatórios especializados e comunidades terapêuticas, na direção oposta à política de saúde mental que deu origem às redes de cuidado em liberdade. Mais recentemente, a vultuosa quantia de 87 milhões foi assegurada para implantação de leitos em comunidades terapêuticas, que hoje encarnam plenamente o  autoritarismo, a tutela e a exclusão dos manicômios.

Em Minas, o governo estadual mostra-se incapaz de enfrentar os interesses representados por este segmento. Desestruturando uma Coordenação de Saúde Mental que, corajosamente,  vistoriou e denunciou os abusos cometidos nestas deploráveis instituições, a Secretaria de Estado de Saúde chegou mesmo a anunciar a reabertura do edital  que as  financia. Os coordenadores não tiveram alternativa senão demitir-se. Mais uma vez abandonados pela Secretaria, os municípios mineiros se ressentem fortemente da ausência de uma política estadual de saúde mental voltada para o cuidado em liberdade e a construção da cidadania.

Na capital mineira, o município trata com descaso uma rede de saúde mental que merece e requer a mais delicada atenção. Completam 25 anos o CERSAM Barreiro e o Centro de Convivência São Paulo; no entanto, o aniversário destes serviços que abriram nossa rede não torna os gestores mais sensíveis aos riscos que a ameaçam. É gritante a sobrecarga de trabalho em todos os equipamentos da saúde mental, com grave prejuízo da assistência integral e cuidadosa que os seus usuários devem receber.  Desmazeladas, em trato, as áreas físicas dos serviços se empobrecem e enfeiam. Uma reforma administrativa alheia às necessidades da saúde mental incluiu os CERSAMs na área das urgências e as equipes complementares no NASF, assim fragmentando a rede, apesar dos protestos de usuários e trabalhadores. Os convênios que financiam os centros de convivência, o Projeto Arte da Saúde e os serviços residenciais terapêuticos mostram-se inadequados para garantir a prevalência da voz e do interesse público nestes dispositivos. Enquanto o cafezinho é cortado como se luxo fosse, continuam a faltar coisas tão básicas como toalhas, roupas de cama e travesseiros. Alguns vereadores defendem uma intervenção na Rua Araribá e arredores nos moldes daquela, cruel e covarde, realizada na cracolândia de São Paulo. E, enquanto tudo isto acontece, o prefeito, obstinadamente, se recusa a receber os movimentos sociais da saúde mental.

Entretanto, resistimos, montados no cavalo azul que nos deixou Basaglia. Na comemoração dos 30 anos do movimento antimanicomial, reuniram-se em Bauru milhares de militantes, mostrando a poderosa energia da nossa luta. Lotamos de forma nunca vista o plenário do Conselho Municipal de Saúde de Belo Horizonte, em defesa da direção antimanicomial da política de saúde mental.  Também no Conselho Estadual de Saúde nos fizemos ouvir, levando o governo do Estado a recuar na reabertura do edital para as comunidades terapêuticas. Em audiências públicas e conferências de saúde, em debates e reuniões, em todos os espaços de militância, prossegue, intenso e tenaz, o nosso movimento.

Neste 18 de maio, mais uma vez, o diverso, o estranho, o singular povoam alegremente as ruas de Belo Horizonte. A diferença, feminina, se expressa no plural: aqui estamos, atentas e fortes, tans tans sem temer o golpe. A loucura ambulante desafia os arrogantes, contra a covarde violência daqueles que aprisionam pessoas, mutilam vidas, matam gente. Diante de tantos tiros que ferem o amanhã brasileiro, prosseguimos em defesa daquilo que resiste à morte: o projeto e o sonho, a beleza e a coragem de que somos capazes. A loucura, resistindo sempre a tudo que tenta fazer-nos servir a uma ordem imposta e a um mundo injusto, ergue mais uma vez a altiva bandeira da liberdade – ainda que tam tam.

NENHUM PASSO ATRÁS, MANICÔMIO NUNCA MAIS!



– CRP PELO INTERIOR –