Entrevista: a Psicologia deve se envolver com a discussão dos critérios para acesso a leitos de UTI?

Psicóloga e doutora em bioética, Letícia Gonçalves, propõe ampliação do debate

Muitas cidades brasileiras chegaram há alguns dias a um dos pontos mais dramáticos gerados pela pandemia de Covid-19: o colapso do sistema de saúde, o que implica na decisão de quais pessoas terão acesso aos cuidados que aumentarão as chances de sobreviverem e quais não terão a mesma oportunidade. E a perspectiva é de que esta escolha tenha que acontecer em todos os estados do país.

Na entrevista a seguir, a psicóloga, doutora em bioética e conselheira no XV plenário do CRP-MG, Letícia Gonçalves, apresenta um panorama de como essas decisões têm sido tomadas no Brasil e defende a inclusão de outras áreas de conhecimento no diálogo sobre o estabelecimento de critérios para acesso aos recursos de saúde. “O mais importante é que psicólogas e psicólogos percebam a urgência e gravidade deste debate e contribuam com sua ampliação e aprofundamento”, afirma.

Interessadas(os) também podem acessar artigo e diálogo virtual que contaram com contribuições da psicóloga.

A Psicologia deve se envolver com a discussão dos critérios para acesso a leitos de UTI? Por que?

A pandemia da COVID-19 representa uma das maiores crises sanitárias do mundo, em toda a sua história, e o maior desafio na história do Sistema Único de Saúde, no caso do Brasil. Embora as principais estratégias de enfrentamento da pandemia devam ser de contenção do avanço acelerado do contágio e a ampliação da capacidade de oferta de serviços em saúde para toda a população, a saturação dos recursos e colapso do sistema de saúde são fases previstas para todos os estados brasileiros, ainda que com gravidades distintas. Isto significa que nem todas as pessoas que demandarem determinados cuidados em saúde para sobreviverem, contarão com o acesso aos mesmos. A consequência inevitável mais grave é que muitas pessoas irão morrer. Diante o contexto de escassez, é consenso, nacional e internacional, a necessidade de estabelecimento de critérios para a alocação de leitos de UTI e de respiradores. Cada país tem pensado seus critérios envolvendo, principalmente, uma avaliação médica das pessoas, a partir de parâmetros técnicos. Porém, esta avaliação não tem sido considerada suficiente e outras sugestões de critérios estão sendo colocadas e adotadas, como a idade, priorizando pessoas mais jovens, o “valor social” de cada pessoa, se por exemplo tem dependentes, e até mesmo sorteio, como última possibilidade. A decisão pelos critérios impactará diretamente na vida de toda a população brasileira, ao estabelecer, principalmente, quais são as pessoas que, caso se contaminem e tenham uma evolução grave do quadro, tendem ao falecimento como desfecho. Trata-se de uma situação única, que demanda parâmetros éticos amplamente discutidos e validados. Neste sentido, não é adequado que as discussões envolvendo o tema estejam centralizadas na medicina, ainda que o estabelecimento dos critérios afete diretamente o exercício profissional desta categoria. A psicologia possui condições, pela sua diversidade de aparato teórico e técnico, de colaborar com a busca de critérios justos, ou, que ao menos, reduzam o aprofundamento de injustiças e desigualdades.

Atualmente, no Brasil, quem decide sobre os pacientes que devem ter acesso ao leito de UTI? Essas decisões se respaldam em qual normativa?

Na ausência de gestão centralizada por parte do Ministério da Saúde, algumas instituições e municípios têm produzido suas próprias normativas. Na maior parte das vezes sem divulgação pública dos parâmetros adotados. Os médicos são os profissionais que mais têm se responsabilizado pela discussão dos critérios. Neste sentido é preciso lembrar que o CFM já possui resolução sobre a triagem para alocação de UTI, porém insuficiente para a situação excepcional que vivemos. Além dos médicos, alguns advogados também têm se envolvido na formulação dos protocolos, pela preocupação com a segurança jurídica das instituições, profissionais de saúde e, principalmente, os médicos. A iniciativa mais relevante no momento, que tem servido de referência em algumas regiões, é o documento de recomendação da AMIB (Associação de Medicina Intensiva Brasileira). Está vigente uma segunda versão, já que a primeira contava com a inclusão do ciclo de vida como critério de triagem e recebeu críticas contundentes sobre seu caráter discriminatório. O documento é público e é assinado também pela Associação Brasileira de Medicina de Emergência (ABRAMEDE), pela Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG) e pela Academia Nacional de Cuidados Paliativos (ANCP). As entidades propõem a adoção de um sistema de pontuação para definir quem terá prioridade. Quanto menor a pontuação, maior a prioridade. A pontuação considera o SOFA score, a existência de alguma comorbidade grave com expectativa de sobrevida menor que um ano e uma escala de funcionalidade. O SOFA avalia o estado de seis sistemas fundamentais: respiratório, coagulação, hepático, circulatório, neurológico e renal.

No atual cenário brasileiro, quais são os principais problemas acarretados pela forma como essas decisões são tomadas?

É importante pensarmos que mesmo critérios considerados técnicos possuem valores que os sustentam, do mesmo modo que implicam em consequências diferentes para as pessoas. Precisamos nos apropriar deste debate e contribuir ativamente com sua ampliação e aprofundamento. A ênfase técnica apresentada indica como objetivo salvar o maior número possível de vidas e a maior quantidade possível de anos com qualidade. Podemos compreender que, ainda que de uma maneira indireta, a questão do ciclo de vida, ou idade, continua operando como critério oculto. Precisamos nos perguntar se concordamos que o direito de pessoas mais jovens atingirem as demais etapas do desenvolvimento implica em que as pessoas com mais anos vividos devam ter sua expectativa de vida encurtada. Uma avaliação puramente técnica também desconsidera que as condições socioeconômicas produzem vulnerabilidades em saúde e que boa parte das comorbidades estão relacionados a estes aspectos. A pobreza, de maneira geral, falta de saneamento básico, condições precárias de moradia, alimentação inadequada, somadas às desigualdades de raça, gênero, orientação sexual e outras, produzem maior adoecimento da população. Consequentemente, já haveria, previamente, a produção de iniquidades quando adotado um critério técnico. Alguns estudos, em andamento, já demonstram que a taxa de letalidade da COVID-19 é maior nas periferias. Estes aspectos reforçam a necessidade de pensar em outras lógicas para alocação dos recursos.

O contexto da pandemia é diferente nas várias regiões brasileiras. Seria possível pensar em critérios estaduais, por exemplo, ou devem ser definidos critérios nacionais?

Parece adequado que as discussões e parâmetros mais gerais deveriam se dar de maneira nacional e centralizada pelo Ministério da Saúde. Na ausência de respostas suficientes neste sentido, outras entidades podem e devem se organizar para suprir esta lacuna. Porém, as disparidades de realidades nas regiões no país demandam leituras e propostas mais coerentes com cada território, ainda que todos possam compartilhar de determinadas premissas mais abrangentes. Existem regiões que ainda estão na fase inicial da pandemia e podem apostar mais em estratégias de contenção. Ainda assim, precisam se antecipar frente à necessidade de estabelecimento destes critérios, uma vez que as fases de saturação e colapso do sistema de saúde são previstas. Cada região deve orientar o estabelecimento dos critérios a partir de uma leitura profunda das características daquela determinada população, prezando pela equidade na distribuição dos recursos e mesmo na distribuição dos danos. É importante levar em consideração aspectos históricos produtores de desigualdades e atuar no enfrentamento direto a estes, combatendo seu aprofundamento. Esta definição precisa ser justificada moralmente e respaldada coletivamente pela população.

Seria pertinente pensar que a escala de prioridades considerasse profissões que estão em relação direta com o contexto da doença, assim, além de profissionais de saúde, deveriam ter prioridade trabalhadoras(es) do sistema funerário, por exemplo?

Esta é uma proposta que poderia ser incluída para a discussão mais ampla. Precisaríamos pensar se ela é justa. Um conjunto de professores de ética propôs, por exemplo, que profissionais de saúde entrassem como prioridade no nível 3, argumentando que eles poderiam retornar ao trabalho e contribuir com a assistência a outras pessoas. Este é um argumento que instrumentaliza o valor destas vidas, na medida em que considera a utilidade das mesmas. De toda maneira, já estamos observando que os profissionais de saúde que se contaminam e desenvolvem um quadro mais grave da doença, demoram a retornar aos serviços de saúde. Por outro lado, se pensarmos a inclusão destes profissionais pela exposição ao risco a que estão submetidos, isto significa que teríamos que incluir muitas outras profissões. Além dos trabalhadores do sistema funerário, como mencionado, os trabalhadores do transporte urbano, trabalhadores informais, que atuam com serviços de delivery, empregadas domésticas, dentre outras. Por mais que pareça que algumas profissões estão mais expostas que outras, não é realmente possível avaliar com a urgência que a pandemia nos coloca. Depois de identificadas todas as categorias expostas, precisaríamos pensar em uma maneira de escalonar as prioridades entre elas. É provável que não seria possível chegar a algum parâmetro justo. Mas é uma discussão para ser continuada.

O mais importante é que psicólogas e psicólogos percebam a urgência e gravidade deste debate e contribuam com sua ampliação e aprofundamento.

 



– CRP PELO INTERIOR –