15 jun Entrevista: Andréa Maris Campos Guerra fala sobre a experiência coletiva que garantiu o prêmio Virgínia Bicudo, concedido pelo CFP
Professora da UFMG enumera movimentos psis que atuam com a pauta antirracista
“Não foi nos livros e artigos que fui afetada pelo racismo institucional. Foi no confronto quinzenal com os relatos e denúncias das pessoas negras, mulheres e homens, que frequentaram este grupo. Foi no cotidiano com eles que me dei conta de que me acreditava universal só porque era branca. Não vemos a cor de nossa pele branca porque também estamos alienados inconscientemente ao ideal de eu branco, que mantém na realidade concreta uma configuração narcísica unicista e todo um sistema simbólico de privilégios”.
Andréa Maris Campos Guerra, graduada em Psicologia (Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora), mestra em Psicologia Social (UFMG), doutora em Teoria Psicanalítica (UFRJ), é professora adjunta do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFMG. Alicerçada na ideia de que a psicanálise tem o dever de tirar de sob os escombros do recalcamento e da denegação as marcas da colonização e resgatar sua função crítica e social dedicada à transformação, trouxe seu afetamento legítimo em relação ao racismo para sua prática, criando o Ocupação Psicanalítica, inicialmente com o professor da UFES Fábio Bispo e uma equipe, hoje com cerca de 100 pessoas, representada na premiação por Hugo Monteiro Ferreira, Marcela Fernanda de Souza, Mariana Mollica da Costa Ribeiro, Natalia Soares Dalfior e Tayná Celen Pereira Santos .
Nesta entrevista, ela conta ao CRP-MG sobre o prêmio, o trabalho e realça os grupos que estão fazendo diálogos sobre o antirracismo.
O trabalho teórico-técnico apresentado por você e as(os) cinco co-autoras(es), que levou o prêmio na categoria Experiência Coletiva, é intitulado como “Ocupação Psicanalítica: por uma clínica antirracista”. O que ele propõe?
O artigo traz uma reflexão psicanalítica sobre como o racismo se articula entre o plano inconsciente e o plano material, bem como relata como o Movimento de Ocupação Psicanalítica pensa e realiza uma clínica antirracista e decolonial nos estados de Minas, Espírito Santo, Rio de Janeiro e Bahia.
Quais reflexões o trabalho traz? Do que se trata essa clínica?
A dificuldade de as pessoas lidarem com seu próprio mal estar faz com que projetem sobre figuras eleitas o seu pior, odiando-se através do outro. Não à toa, esse ódio recai sobre a pessoa de pele negra. O racismo é parte do modo colonial de poder, saber, ser e gênero que forjou uma hierarquia humana assentada no conflito, na dominação e na exploração de populações que são subalternizaras em diferentes áreas da vida: capital, autoridade, gênero, trabalho. Por isso, seja com pessoas periféricas, quilombolas, estudantes cotistas, lideranças sociais e políticas, iniciamos uma série de ações da clínica ampliada que visam reverter o quadro do racismo à brasileira em seus distintos modos de negação e de defesa, bem como romper com o pacto narcísico branco que mantém o circuito de privilégios a ele correlato.
Na sua opinião, o prêmio Virgínia Bicudo é uma forma de fortalecer o antirracismo?
O prêmio é fundamental para dar visibilidade a uma questão silenciada e negada em nosso país: o racismo estrutural. Ele incentiva novas práticas psi, bem como fortalece a rede antirracista já existente no campo da Psicologia. É uma maneira de tomar a história que nos antecede contra o racismo e dar continuidade ao trabalho necessário para sua superação!
A psicanálise tem se inspirado em que para se pautar no antirracismo?
Nós nos inspiramos nas psicanalistas e intelectuais negras brasileiras, como Virgínia Bicudo (que dá nome ao prêmio), Lélia Gonzalez, Neusa Santos Souza, Isildinha Nogueira, Maria Lúcia Silva, Maria Aparecida Bento. E vemos nas teorias decoloniais, nos estudos críticos e feministas e na Psicologia Social que possui pontos amadurecidos que são para nós inspiração, recurso e fonte de diálogo.
A temática do antirracismo vem gerando uma maior implicação da categoria de psicólogas(os)?
Sim. Existe um movimento histórico de resistência e luta contra o racismo, que nasce no movimento quilombola e segue até nossos dias com o movimento da negritude. Assim, no Brasil, além dos movimentos amplos, como o Movimento Negro Unificado (MNU) e a Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as (ABPN), a ANPSINEP (Articulação Nacional de Psicólogas(os) Negras(os) e Pesquisadoras(es) é uma das precursoras na discussão e proposição de ações antirracistas no âmbito da Psicologia. Testemunhamos hoje um movimento da categoria – não apenas no Sistema Conselhos, mas também junto aos movimentos sociais e projetos que antecedem o Ocupação -, que nos dão a certeza de que o movimento antirracista não é mais uma expectativa, mas uma forte e potente rede em crescimento. O racismo não é mais uma pauta que pode ser deixada de lado pela Psicologia.
Sobre o Coletivo Ocupação Psicanalítica – Surgiu de uma iniciativa de psicanalistas vinculados à Universidade Federal de Minas Gerais e à Universidade Federal do Espírito Santo, hoje também no Rio de Janeiro e Recôncavo Baiano, com o intuito de construir uma psicanálise implicada no enfrentamento do quadro de desigualdade racial institucional e de privilégios raciais dentro da universidade e da própria psicanálise. Atua nos eixos: da clínica, que inclui atendimentos individuais e conversações com coletivos de estudantes negros, quilombolas e movimentos sociais periféricos; da produção de saber, que inclui uma pesquisa aprofundada da problemática do racismo; da transmissão, que inclui cursos de extensão, seminários, livros, artigos e espaços de supervisão continuada dos atendimentos clínicos.
Saiba mais sobre o a premiação – O Conselho Federal de Psicologia (CFP) divulgou no final de maio a lista de vencedoras(es) do Prêmio Profissional Virgínia Bicudo. Foram premiados nove trabalhos teórico-técnicos apresentados com o tema “Práticas para uma Psicologia Antirracista”, nas categorias de experiências individuais e experiências coletivas. A premiação ocorreu durante o Seminário Nacional que celebrou os 25 Anos da Comissão de Direitos Humanos do CFP, realizado em Brasília. Os trabalhos inéditos, apresentados sob a forma de artigo técnico ou relatos de práticas embasadas na ciência psicológica, foram julgados por um comitê constituído por membros selecionados pela Comissão de Direitos Humanos do CFP.
O Prêmio Profissional Virgínia Bicudo teve como objetivo identificar, valorizar e divulgar estudos e ações de psicólogas(os) e coletivos que envolvam a Psicologia e as relações étnico-raciais, fundamentadas nos direitos humanos e que tenham impacto na saúde mental, na redução das desigualdades sociais e no posicionamento antirracista.