Entrevista: Ângela Soligo fala sobre repercussões da educação na vida dos sujeitos e compartilha reflexões sobre o atual contexto brasileiro

CRP-MG conversa com a professora para marcar o Dia Nacional da Educação

 Ângela Soligo, doutora em PsicologiaComo a educação repercute nas diferentes esferas da vida dos indivíduos? Toda educação promove emancipação? Quais resultados o trabalho conjunto entre Psicologia e Educação têm produzido? Essas foram algumas das questões que o Conselho Regional de Psicologia – Minas Gerais (CRP-MG) propôs à doutora em Psicologia e docente colaboradora da Faculdade de Educação da Unicamp, Ângela Soligo. A entrevista é uma iniciativa do CRP-MG, por meio da Comissão de Psicologia Escolar e Educacional, para celebrar o Dia Nacional da Educação, comemorado em 28 de abril.

“O conhecimento emancipa, mas não é toda educação que é intrinsecamente emancipadora. Paulo Freire já nos ensinou que a educação que é meramente transmissão de conhecimentos prontos, que ele chamou de educação bancária, não é emancipadora”, afirma a professora. Uma homenagem ao centenário do educador foi realizada durante a III Mostra de Práticas em Psicologia e Educação de Minas Gerais, promovida pelo CRP-MG em setembro de 2021 e que está disponível no canal da autarquia no Youtube.

Confira a íntegra da entrevista com Ângela Soligo a seguir:

Como o acesso à educação de qualidade repercute nas diferentes esferas da vida do indivíduo?
O acesso à educação de qualidade repercute de muitas maneiras na vida do indivíduo. A mais facilmente reconhecida é que tendo acesso à educação e seguindo ascendendo nos níveis educacionais, as pessoas têm mais chances de encontrar espaços de trabalho melhor remunerados e assim melhorar suas condições concretas de vida. Essa é a dimensão mais evidente, mas o acesso à educação de qualidade permite que as pessoas reflitam, pensem sobre essa realidade. Pensar sobre a realidade, olhar criticamente para ela, significa não somente aceitar o que está dado, mas também pensar em transformações, em mudanças, para que a vida seja cada vez mais inclusiva, equânime e justa. O acesso ao conhecimento permite a ampliação das formas de ver o mundo, permite ver para além das aparências, dos preconceitos, além das próprias características do indivíduo e de seu grupo social, portanto, o acesso ao conhecimento permite uma visão de humanidade diversa. Permite a construção de perspectivas de relações humanas mais solidárias, mais empáticas.

Todo processo educativo contribuirá para a formação de pessoas emancipadas ou há aspectos que precisam ser observados?
O conhecimento emancipa, mas não é toda educação que é intrinsecamente emancipadora. Paulo Freire já nos ensinou que a educação que é meramente transmissão de conhecimentos prontos, que ele chamou de educação bancária, não é emancipadora. Acaba produzindo sujeitos responsivos, ajustados, que aceitam a realidade como está posta e reproduzem o ideário dessa realidade. Então são sujeitos que acabam reproduzindo o status quo, a situação como ela está dada. E Paulo Freire diz que uma verdadeira educação vai além da transmissão, é a educação que produz reflexão, é a educação que, calcada na realidade objetiva, faz com que o sujeito reflita sobre ela. É a educação que faz com que o sujeito se sinta sujeito, não se sinta objeto do mundo, de uma sociedade que está pronta, de uma realidade que está dada. Uma educação libertária ajuda a entender que a realidade e as coisas da realidade não são naturais, são produtos das ações humanas, são produtos da dinâmica política, econômica, social, cultural. Uma verdadeira educação é aquela que permite construir outros mundos possíveis e permite que o sujeito se sinta parte dessa construção.

Considerando o atual contexto brasileiro, quais são os principais desafios que estão colocados para o campo da Educação?
Os desafios da Educação atual são imensos porque desde o final de 2016 e depois com a eleição de um presidente que faz um governo de contorno fascista, a Educação vem sofrendo ataques, só vem sofrendo perdas. Desde a chamada PEC da Morte, de 2016, em que se congelam os investimentos em Educação e Saúde por 20 anos, a Educação passa por um processo intencional e perverso de precarização. Nesse processo, carreiras e salários docentes são afetados, contratações para ampliação do sistema de Educação Básica e de Ensino Superior são afetados, as universidades e os institutos federais são atacados, por meio do corte de verbas, da perseguição a reitores e a docentes, e da retirada de recursos para pesquisa. Isso sem falar do discurso negacionista que desqualifica a ciência. Tudo isso são ataques à Educação brasileira. O novo Ensino Médio também é um exemplo de ataque porque reduz ao mínimo do mínimo as chances de acesso ao conhecimento que serão oferecidas para nossos jovens que estão nas escolas públicas, porque as privadas continuarão a fazer o que sempre fizeram. Há então um intento deliberado de esvaziar o Ensino Médio, o que resulta na ampliação do abismo social porque resulta em obstáculo para que a juventude pobre e de classe média que frequenta as escolas públicas acesse as universidades. Soma-se a isso a desqualificação docente. É notório no discurso presidencial como o governante se refere à categoria docente, inclusive dizendo que professor demais atrapalha. Atrapalha quem? Qual é a concepção de professor que está posta nessa frase? Qual é a concepção que se tem quando se considera que professor não precisa de salário justo, digno e correspondente à responsabilidade que assume em nosso país? Também é um ataque à Educação brasileira e à Lei de Diretrizes e Bases da Educação, de 1996, que é a Lei da Inclusão, quando volta de forma tão forte o discurso capacitista, a ideia expressa pelo ex-ministro da Educação de que a criança com deficiência atrapalha a escola, a ideia de que a universidade não é para todo mundo, que é para poucos, esse é mais um exemplo de ataque à nossa Educação. E um terceiro exemplo que eu quero dar é do contexto da pandemia. Tivemos que encerrar atividades presenciais para evitar a disseminação do coronavírus, mas a forma como foram instaladas as atividades remotas: apressada, sem planejamento, sem recurso aos docentes, sem recurso aos estudantes, é um ataque. São muitas crianças e jovens que não tiveram acesso às atividades remotas e agora no retorno – que não foi feito com o devido preparo – vão sentir o peso daquilo que não foi feito, daquilo que ficou para trás. Ainda pensando na pandemia, não posso deixar de mencionar o decreto presidencial, relativo a 2020 e 2021, anos que foram trabalhados de forma exaustiva e constante pelos professores desse país, e que não contarão para efeito de aposentadoria dos professores. Isso é de uma crueldade inaceitável.

Quais são os principais resultados produzidos pela atuação conjunta entre Psicologia e Educação?
A relação entre Psicologia e Educação é histórica. Desde o ingresso da Psicologia no país, como corpo de conhecimentos, depois a sua regulamentação como profissão, a Educação sempre constou como campo de formação e de atuação da psicóloga e do psicólogo. E nesse caminhar a própria Psicologia foi amadurecendo como uma área que contribui para esses processos de emancipação, processos de ensino aprendizagem que visam a constituição de um sujeito reflexivo, de um sujeito que pensa a sua realidade, para além do aparente, para além daquilo que é dado. É claro que nem tudo são flores, nem tudo são caminhos retos, a Psicologia também serviu à rotulação daqueles que são alvos da queixa escolar, também serviu à patologização. Mas essa mesma Psicologia vai fazendo sua autocrítica, entra no combate à medicalização e à patologização, e constitui o campo e o seu lugar na e para a escola. Não mais o lugar de olhar para o indivíduo isolado, que está na escola, mas de olhar para o sujeito que se constitui na dinâmica escolar, de olhar para a escola como um cotidiano em que a aprendizagem, o acesso ao conhecimento e as relações humanas acontecem. Então, a Psicologia cresce e amadurece ao se inserir no campo da Educação. E nesse processo de amadurecimento vai apontar as suas contribuições. Isso fica muito bem marcado no movimento de 19 anos para inserção dos serviços de Psicologia e Serviço Social nos sistemas públicos de Educação Básica, que é a Lei nº13.935, aprovada em dezembro de 2019. Neste processo, a Psicologia Escolar se apresenta e mostra suas possibilidades na construção dos projetos pedagógicos que visem o acesso ao conhecimento historicamente valorizado e a ampliação dos conhecimentos também historicamente negados, que visem a promoção do pensamento crítico, autônomo e a construção de relações e de uma vivência escolar marcada pelo respeito e pela diferença como princípio e não como obstáculo. Esses são pontos que estão sendo apresentados hoje à sociedade e ao campo da Educação como contribuições significativas da Psicologia. A Psicologia no campo da Educação aprende a trazer as contribuições das políticas educacionais, da história da educação, do funcionamento do sistema educacional, contribuições acerca do cotidiano escolar, que vêm da Antropologia, da Sociologia, da Filosofia, da História, da Educação. Trazer esses conhecimentos para a formação em Psicologia não só nos prepara para uma atuação competente na escola, mas nos capacita para uma atuação em qualquer campo em que a Psicologia atue porque passamos muitos anos da nossa vida dentro da escola, desde muito pequenos, e depois como jovens adultos no Ensino Superior. Então muito daquilo que nós somos se constrói dentro da escola, na relação com a escola, com as suas dinâmicas, com seus conteúdos e com as suas pessoas, portanto, trazer o campo da Educação para a formação e a atuação em Psicologia é fundamental para compreendermos esses sujeitos com quem trabalhamos nos diferentes campos e para entendê-los na diversidade que marca este país que é quase um continente.



– CRP PELO INTERIOR –