Entrevista: conselheira Isabella Lima propõe reflexões sobre os desafios para a Psicologia em relação aos Direitos Humanos

Fortalecimento do posicionamento antirracista é um compromisso da gestão

Os Direitos Humanos são o alicerce da Psicologia enquanto ciência e profissão, conforme consta no próprio código de ética profissional. Para comprovar essa importância, o Sistema Conselhos de Psicologia funciona a partir de suas comissões de Direitos Humanos há mais de 25 anos. Elas têm como meta mobilizar a categoria na defesa das pessoas por meio de diversas ações, que vão desde encontros, campanhas, reuniões e incidências em outros órgãos de governo. No entanto, atuar buscando essa garantia para a população, no Brasil, é algo bem complexo dado o histórico de violências e de desigualdades.

Para falar sobre este assunto, entrevistamos Isabella Lima, conselheira que está à frente da Comissão de Direitos Humanos do Conselho Regional de Psicologia – Minas Gerais (CRP-MG). Ela é psicóloga e doutora em Psicologia pela UFMG e professora de graduação.

No CRP-MG, como nos demais regionais, a CDH mudou sua coordenação em setembro passado. Prestes a completar um ano dessa transição, você poderia definir quais são os principais desafios mapeados?
Isso mesmo. Assumimos a coordenação da CDH na mudança da gestão. Fizemos um breve período de transição com o acompanhamento da conselheira Liliane Martins, que estava à frente da comissão anteriormente e que segue nos apoiando. Então, assumimos eu, o conselheiro Daniel Melo, da subsede Triângulo, e o conselheiro Henrique Galhano. No final de 2022 realizamos uma live que considero o início de nossa atuação e ao mesmo tempo teve relação com a transição, já que uma das convidadas foi a Claudia Mayorga, professora da UFMG e Pró-reitora de extensão, que estava representando Minas Gerais na CDH do CFP até o início deste ano, quando assumiu a professora Paula Gonzaga, também da UFMG.

Conforme a Conselheira Liliane indicou desde o início, um desafio importante relaciona-se com um certo esvaziamento da CDH. Trata-se de uma comissão permanente que existe há bastante tempo, porém, ainda não conseguimos efetivar uma lógica de participação regular de conselheires e convidades. Então, essa é uma tarefa que assumimos e que tentaremos dar conta: tornar essa comissão mais movimentada. Para isso, estamos preparando uma normativa que deve sair até o final de 2023, pois embora a comissão exista há muitos anos no CRP, ainda não temos uma resolução específica, como outros CRs já fizeram. E estamos vislumbrando algumas possibilidades de trabalho que incluem atividades nas subsedes, trabalhos em articulação com as comissões temáticas, a realização de eventos; gostaríamos de efetivar um trabalho que não esteja centrado na sede, mas sim com ações nas subsedes e que estejam em consonância com as diferentes demandas e necessidades da categoria nos diversos territórios mineiros. Além disso, pretendemos trabalhar de maneira alinhada com a CDH federal. Para isso, já iniciamos uma aproximação com a Paula Gonzaga.

Um outro desafio que acho importante, extrapolando a pergunta, mas em relação com ela, refere-se ao fato de que não é possível desconsiderarmos que os direitos humanos configuram uma pauta em disputa, com contradições desde a origem dessa concepção com a qual trabalhamos. É verdade que nosso Código de Ética profissional se ancora em uma referência normativa muito importante para todes nós, que é a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Mas também é verdade que essa Declaração tem uma marca histórica. Quando foi criada, não estava direcionada para todas as pessoas. Essa é uma disputa. Então, eu sempre falo o seguinte: hoje é muito difícil uma pessoa se apresentar, pelo menos publicamente, como contrária aos Direitos Humanos, não é? Mas quais direitos? Para quem? Para todas as pessoas? Estamos falando de direitos humanos numa perspectiva liberal ou não? É mais importante a garantia de direitos civis e políticos, do direito à propriedade privada, por exemplo, do que a garantia dos direitos coletivos, como o direito ao trabalho digno? São questões que ainda precisamos colocar, para que seja possível explicitar com qual concepção estamos trabalhando, quando nos remetemos à ideia de que a Psicologia precisa estar fundamentada nos Direitos Humanos. Onde eu quero chegar: considero que ainda é um desafio trabalhar junto à nossa categoria profissional de modo a qualificar a conversa sobre o tema. Isso porque, apesar de algumas mudanças nas últimas décadas, a Psicologia ainda é um campo muito elitista, muito conservador. Isso significa que muites de nós trabalham com uma ideia de direitos humanos muito restrita, que tende a uma perspectiva muito mais liberal. Pessoalmente falando, eu diria que mais que restrita, considerando a história do nosso país, é uma perspectiva inadequada. É importante lembrar que dentre os princípios fundamentais apresentados no nosso Código de Ética Profissional, a Resolução CFP nº 10/2005, não basta considerar apenas o primeiro. Temos que ter muita atenção ao que está fundamentado essa normativa conforme os outros princípios, com destaque para o segundo (atuar para a eliminação de quaisquer formas de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão), o terceiro (análise crítica da realidade) e o sétimo (considerar as relações de poder).

Diante de tantas temáticas para trabalhar dentro da CDH e mesmo no CRP-MG, quais pautas são prioritárias e como começar?
Ao meu ver, a maior riqueza da CDH é a possibilidade de afirmarmos continuamente a interdependência e a indivisibilidade dos Direitos Humanos. Temos algumas comissões temáticas no CRP que trabalham de forma particularizada algumas pautas, como a comissão de gênero e diversidade, a de migração, a de Relações étnico raciais. São todas ativas e consolidadas, mesmo as mais recentes, e também considero que nosso papel é fortalecê-las. A respeito das pautas prioritárias, ainda estamos trabalhando nessa construção, mas me atrevo a pensar que a questão da privação da liberdade seja um ponto importante.

Historicamente a CDH acompanha os processos de inspeções que o CFP coordena e mesmo antes de estarmos no conselho, Daniel e eu já fizemos parte desses processos. Depois da Ulapsi, para a qual Daniel foi representando a CDH, ele vem realizando algumas atividades sobre prevenção e combate à tortura que são desdobramentos da oficina que ministrou lá. Recentemente tiveram início os trabalhos Comitê Estadual Interinstitucional de Monitoramento da Política Antimanicomial no âmbito do Poder Judiciário, com o objetivo de fechar os manicômios judiciários, em consonância com o que já está previsto desde 2001, por meio da Lei Federal 10.216. Estamos no comitê representando o CRP pela CDH eu e o conselheiro Gab Lamounier. Um outro espaço de privação de liberdade que vem sendo denunciado pelo sistema conselhos há algum tempo são as instituições totais conhecidas como comunidades terapêuticas, que historicamente no Brasil recebem pessoas usuárias de drogas, mas não apenas, pois temos muitos relatos de pessoas dissidentes que gênero que acabam nesses lugares, com a proposta absurda de terapias de conversão sexual. Esse também é um ponto de interesse nosso no que diz respeito à nossa atuação. Recentemente acompanhei a realização de uma pesquisa sobre as condições para o exercício de direitos sexuais e direitos reprodutivos de mulheres usuárias de drogas em Belo Horizonte, a questão da violação desses direitos nas comunidades terapêuticas apareceu fortemente. Além de tudo isso, parece que alguns CRs e talvez o CFP vêm levantando a questão do trabalho doméstico analógo à escravidão e esse pode ser um ponto de trabalho nosso também. Mais uma vez, a questão da privação da liberdade. Temos visto inúmeras denúncias dessas situações graves de violência e a Psicologia também pode contribuir no enfrentamento a essas violações de direitos.

Podemos dizer que o combate ao racismo fundamenta a atuação da CDH na atualidade?
Sem dúvida. O fortalecimento do posicionamento antirracista é um compromisso dessa gestão do CRP-MG e não poderia ser diferente para nós, na CDH. A última campanha nacional de Direitos Humanos mobilizada pela CDH Federal teve justamente essa pauta como destaque e penso que é nossa tarefa dar continuidade a essas discussões, mesmo sabendo que teremos também outros focos. É impossível pensarmos em Direitos Humanos em nosso país sem considerar o racismo e a necessidade de o enfrentarmos. Todas as pautas que acabei de sinalizar como prioritárias em função de nossas trajetórias precisam ser consideradas em uma perspectiva racializada. A questão da privação da liberdade, seja nos ambientes domésticos, seja no sistema penitenciário para adultos ou adolescentes, seja nos manicômios judiciais, seja nas outras instituições totais chamadas de comunidades terapêuticas, é impossível tratar dessas questões sem considerar o racismo. Eu sempre gosto de lembrar que, além de tomarmos o Código de Ética como parâmetro para nossa atuação, no que se refere à defesa dos Direitos Humanos é importante recuperar a todo tempo algumas resoluções, como por exemplo a Resolução CFP nº 18/2002, e algumas orientações técnicas do Crepop como aquela sobre relações étnico raciais. Isso precisa ser um exercício constante pra nós porque não apenas a nossa história é marcada pelo racismo; isso ainda faz parte da estrutura de formação. Ainda hoje a nossa formação profissional, além de elitista, é racista. E, se realmente queremos trabalhar em prol dos direitos humanos, precisamos, além de reconhecer isso, agir para que haja transformação. Seja questionando os processos formativos, seja questionando nossas práticas profissionais, inclusive no próprio sistema conselhos, que obviamente não está livre de reproduzir discursos e práticas racistas. Precisa ser um exercício constante e precisa ser um exercício coletivo.

A patologização da vida algumas vezes colocada pela própria Psicologia demonstra que ela também atua como violadora dos DH. Como lidar com tamanho desafio?
Essa é uma excelente questão. A patologização da vida, seja pela via das discussões sobre gênero, seja pela via das questões de saúde mental, é limitadora. Nesse sentido, eu penso que incidir nos processos formativos é fundamental. Desestabilizar algumas certezas fundadas em critérios morais, normativos, sobre a existência. Desestabilizar normas e pensamentos binários. Desestabilizar leituras que patologizam as experiências comuns à existência, como o sofrimento. E sim, ainda produzimos na Psicologia conhecimentos e práticas patologizantes. Precisamos fazer esse tipo de movimento de desestabilização e crítica nos processos de formação desde a graduação. A graduação em Psicologia precisa comportar desconfortos, questionamentos, desconstruções. Precisa compor crítica e a crítica precisa ser também à própria Psicologia. Não apenas em uma perspectiva histórica, mas também a respeito daquilo que estamos fazendo hoje. Ainda reproduzimos nos processos formativos lógicas de compreensão que individualizam questões que são sociais e que invisibilizam experiências de opressão. E por isso, ainda desvalorizamos e não reconhecemos a potencialidade de nossa atuação profissional em contextos não tradicionais. Mas nós temos muitas produções teóricas e muitas experiências que nos ajudam a enfrentar essa posição, ainda hegemônica. Esses dias, por exemplo, eu estava falando com uma turma sobre como mudamos de perspectiva ao refletirmos sobre o documentário Estamira pelo viés da saúde coletiva, pensando sobre como os determinantes sociais irão influenciar a saúde, inclusive a saúde mental, em relação ao viés da psicopatologia. Não se trata de negar o sofrimento psíquico, que tem também uma dimensão individual, mas de reconhecer o fato de que esse sofrimento existe em uma realidade de injustiça social, de violação de direitos, que muitas vezes irá agravar o sofrimento ou até mesmo produzi-lo. Reconhecer que, por mais técnicas psicológicas que se possa utilizar, tem ali uma dimensão que não é individual. Eu gosto muito do conceito de sofrimento ético-político, da Bader Sawaia, para contrapor à lógica individualizante. Essa lembrança do filme é apenas um exemplo, esse tipo de exercício é necessário o tempo todo quando estamos falando de direitos humanos.

Também considero que é impossível formar psicólogas sensíveis ao campo dos direitos humanos se elas não compreenderem de forma radical que a diversidade é fundamento da experiência humana. Tenho tido algumas experiências interessantes atuando como professora de Psicologia em instituições privadas e não é rara a demonstração de desinteresse pelas discussões sobre direitos humanos. Principalmente nos períodos finais do curso, existe, por parte de alunes, alunas e alunos, uma preocupação muito grande em relação às técnicas e uma falta de interesse sobre questões que, equivocadamente, consideram teóricas. Então, em alguns momentos, tenho feito um esforço grande para fazer com que as futuras colegas de profissão tenham uma perspectiva de trabalho que considere as desigualdades sociais, os impactos subjetivos do racismo, a patologização das identidades trans, a medicalização da vida, a desvalorização das diversidades corporais e das deficiências. Todas essas questões têm uma dimensão individual, mas são coletivas. Tem a ver com a forma como nós temos construído nossas relações no modo de produção capitalista.

Para encerrar, estamos bem próximas de comemorar o Dia da(o) Psicóloga(o) e olhando para os rumos que o Brasil está tomando, o que você vislumbra para a Psicologia?
Bem, acho que para olhar pra frente é sempre importante olhar para trás. Esse exercício de pensar o presente com essa perspectiva de futuro e compreensão do passado é muito importante quando a gente fala de transformação social. Precisamos ter essa perspectiva, ter memória. Então, essa pergunta imediatamente me remete à ideia de que não é possível o exercício da Psicologia fora da democracia. Considerando tudo que falei até aqui, pode parecer ÓBVIO, mas é bom deixar explícito que essa prática fundamentada nos Direitos Humanos, que respeita e valoriza a diversidade humana, só tem espaço em uma democracia. A valorização da diversidade, do espaço público, da possibilidade da convivência, do dissenso, nada disso cabe em contextos antidemocráticos. Foi justamente por isso que no ano passado, na ocasião em que houve um questionamento sobre o processo eleitoral, o CFP inclusive se manifestou. Então, eu penso que nós precisamos cada vez mais nos atentarmos ao contexto em que estamos, compreendermos de forma crítica os processos políticos e participarmos de espaços públicos, coletivos. Eu considero que precisamos, por meio dessa perspectiva crítica e não patologizante, produzir práticas de cuidado que sejam mais libertadoras, no sentido de acolher as pessoas em suas escolhas. Não aposto em uma perspectiva de atuação que pretende fortalecer uma leitura positiva de tudo. Não desejo que atuemos para que as pessoas sejam felizes o tempo todo. Estamos em um momento muito ruim, de ampliação de movimentos de extrema direita, ultraconservadores, de ampliação também das desigualdades sociais. Não podemos, com tudo isso, esmorecer e fortalecer esses projetos de sociedade. Também é importante pensar sob quais condições os profissionais psi trabalham (remuneração, condições de trabalho) pois trabalho digno também é direitos humanos. Por fim, a Psicologia precisa ter o compromisso com a eliminação de todas as formas de opressão que engendram o modo de produção capitalista e a superação do próprio sistema.



– CRP PELO INTERIOR –