Entrevista: desafios para o atendimento psicológico aos povos indígenas devem ser superados por meio do respeito às ancestralidades

Psicóloga convidada pela Comissão de Orientação em Psicologia e Relações Étnico-Raciais do CRP-MG, Rejane Paféj Kanhgág, aponta caminhos para uma atuação que mitigue a invisibilização indígena e os adoecimentos que dela decorrem

No mês em que se marcam datas como o dia do Indígena, da Terra e da chegada dos europeus ao Brasil, o Conselho Regional de Psicologia – Minas Gerais, por meio da Comissão de Orientação em Psicologia e Relações Étnico-Raciais, propõe reflexões sobre a atuação Psi frente aos impactos da história de violações de direitos, até os dias atuais, na saúde mental dos povos ancestrais.

Nesta entrevista, a psicóloga indígena, mestranda em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Rejane Paféj Kanhgág, a convite do Conselho, mostra o quão essencial é conhecer, considerar e respeitar as especificidades dos modos de vida dos povos indígenas.

Qual é o desafio mais persistente nos dias de hoje do atendimento psicológico à população indígena?
O desafio é fazer uma escuta realmente inclusiva, com o olhar mais sensível aos povos indígenas, respeitando os modos de ser e viver, respeitando as nossas particularidades, as nossas especificidades culturais, para que tenhamos uma saúde realmente inclusiva, pois somos colocados em uma caixinha onde se diz “bem-viver indígena”. Bem-viver para quem? Somos mais de 305 etnias e todos vamos trabalhar cosmologia sim, para uma saúde mental indígena, saúde espiritual para o corpo sadio. Eu, por exemplo, trabalho os nossos modos tradicionais como modelos terapêuticos em conjunto com os kujá (médico espiritual) e os kofás (velhos sábios).


Para se manter crítica e comprometida com a justiça social, a Psicologia deve colocar como ponto nevrálgico na atenção à população indígena a própria história da colonização brasileira fundada no extermínio dos povos originários?
É preciso considerar a real história de extermínio do nosso povo, porque muitas etnias e línguas maternas foram extintas. Quando vamos para escola, por exemplo, encontramos livros com a história fajuta onde Cabral descobriu o Brasil, enquanto meu povo, que foi massacrado, violado e violentado, luta diariamente para dar voz às suas comunidades, para contar a sua verdadeira história, de luta e massacre. Meu povo já estava aqui. Meu povo luta por uma saúde e uma educação nos modos tradicionais indígenas. Nosso tempo é outro e devem ser respeitados o canto e a dança, o fogo de chão, porque assim começa nossa educação nos nossos modos de ser e viver indígena. Tudo isso foi silenciado, querem nos colonizar todos os dias. Nos dão acesso, mas negam permanência. Temos que nos adequar aos espaços que são ocidentais europeus, sendo esses espaços que nos adoecem. A Psicologia deve olhar com atenção para esses povos e entender o que é saúde para eles. Saúde para o meu povo é o canto, é a dança, é comer nossas comidas típicas sem veneno, é colocar os pés no chão, é tomar a nossa medicina tradicional, é viver no coletivo sem impor a ditadura do relógio. Temos nosso próprio tempo.  É vendido esse estereótipo, esse fenótipo indígena: índio, né? Não se fala indígena, se fala índio de uma forma pejorativa, com um padrão totalmente colonizador no qual o personagem tem olhos puxados, cabelos lisos e mora no meio da mata. Não, pelo contrário. Hoje nós temos que ocupar nossos espaços que foram roubados para dar voz às nossas comunidades. Temos que nos adaptar às novas tecnologias para conseguir quebrar esses paradigmas, denunciar os retrocessos, fazer com que parem de falar por nós. Pois grandes chefias ainda são comandadas por não-indígenas, que não conhecem a nossa cultura, nem sequer conhecem nossas aldeias. É falar por nós sobre nós.


Quais são os principais adoecimentos percebidos na população indígena considerando que a centralidade do bem viver, alicerçada na vida em comunidade, vem sendo violentamente rompida década após década?
Os principais adoecimentos que vejo dentro da aldeia, hoje, são causados pelo preconceito, violências e violação de direitos. Nós somos excluídos, somos menosprezados, somos diminuídos.  Temos que mostrar que somos capazes e temos potência como profissionais indígenas. A cidade que a aldeia representa é menor que a aldeia, mas mesmo assim dificilmente você verá um indígena trabalhando em lojas, supermercados, sendo linha de frente. Não temos oportunidade. Pelo contrário: somos invisibilizados, somos considerados como incapazes. Isso nos adoece. Estamos lutando há mais de 520 anos para ter voz. Então, acredito que nossos adoecimentos são decorrentes disso. Veja que todos os dias é vendida a “família margarina” em TVs, revistas e  redes sociais. Nossos jovens têm contato com tudo isso, essa vida de mentiras que adoece. O capitalismo não nos faz sentido e, mesmo assim, é vendido aos nossos jovens. Os jesuítas faziam isso: alienavam nossos kosînh (filhos). Ao chegar na universidade, o primeiro passo da instituição foi tentar me moldar, me enquadrar no “padrão psicólogo”, “na ditadura do relógio”: ler artigos, produções acadêmicas excessivas. Nada que me fizesse sentido. Ao contrário, trazia o padrão europeu ocidental como único e verdadeiro. A minha educação e saúde são outras: é ao redor do fogo, no canto, na dança na pintura, no meu cocar sagrado. São sabedorias ancestrais que vêm passando de geração em geração. Costumo dizer que eu, Rejane Paféj kanhgág, sou semente de minha vó Domingas cristã, sou semente de Mãe Maria kairu, e deixarei sementes como meu filho, Kafág, para dar essa continuação, para que essas vozes que ecoam não sejam caladas, não sejam silenciadas.


E, agora, durante a pandemia de Covid-19, quais têm sido as principais questões?
Uma das principais questões que estamos vivenciando é o não-luto. Não estamos conseguindo chorar nossos mortos, fazer nossos fechamentos de ciclo, nossos rituais de passagem. São situações que nos adoecem espiritualmente, psicologicamente. Junto a isso vem a falta de políticas públicas, de assistência básica dentro das aldeias, como equipes multidisciplinares que façam atendimento exclusivamente de atenção à Covid-19. Não estamos conseguindo expor nossos artesanatos, vender nossas cestarias. Antes da pandemia o trabalho formal já era difícil agora ficou praticamente impossível. Dentro da aldeia é coletivo: dividimos tudo, o pouco que temos. Podemos dizer que estamos sobrevivendo, tentando nos manter vivos, usando nossa medicina tradicional no combate desse venhkuprîg korêg (espírito ruim).

Como a sabedoria dos povos indígenas e sua visão de mundo podem contribuir para o desenvolvimento da Psicologia? De que maneira podemos, enquanto psicólogas(os), contribuir efetiva e cotidianamente para a luta dos povos indígenas, seja institucional ou individualmente?
A sabedoria dos povos indígenas é ancestral. São repassadas de pai para filho, de filho para neto. Sabedorias daqueles que lutaram muito por espaços como esse, de agora, de estar falando aqui, nesta entrevista. São espaços onde mostra o que é saúde para nós, o que nos representa. O respeito com as matas, com os rios, com a medicina tradicional, com os mais velhos. Acreditamos que a nossa saúde depende das matas; se elas adoecem, se os rios adoecerem, nós também vamos adoecer, pois nós, seres humanos, dependemos da saúde da floresta: sem ar, sem água, não vamos viver. Respeitamos todos os animais. Acreditamos que é através deles que vem a sabedoria. Quer um exemplo? A sukrîg, a aranha, a nossa cestaria é feita através dela, porque é ela que faz as mais belas tranças, as mais belas teias. Quando vamos aprender a trançar entramos na mata pedindo permissão à mata – pois estamos entrando em sua casa, pedimos permissão à mãe terra, para a grande floresta sábia. Pedimos permissão a ela, pois você não vai gostar que alguém chegue e invada a sua casa, se aposse dela. Ao pedir permissão para entrar, vamos achar uma sukrîg com quem nos identificamos e vamos pedir permissão a ela para nos repassar os mesmos dons que tem, para dividir esses dons. Essa é uma forma de conexão muito rica que herdamos e cultivamos. Esse é apenas um exemplo de como podemos contribuir para que os nossos modos de ver o mundo, a nossa Psicologia, a saúde mental do indígena sejam respeitadas nos modos de ser e viver indígena. Temos uma escuta coletiva. Não é individual. Dentro da aldeia acreditamos que se um indivíduo adoecer todo um coletivo pode adoecer; a sua família inteira pode adoecer. Por isso, pensamos muito que a nossa visão de mundo, o cuidado com as matas, cuidado com o nosso alimento sem veneno, o cuidado e respeito com o outro, com as vontades do outro, fazem a diferença. Por exemplo, para nós, ouvir vozes, em nenhum momento, é tido como patologia ou doença psíquica, pelo contrário: é sentir conectado, é um dom, que é transmitir as vozes de um outro mundo, de um segundo mundo, de outras dimensões. É algo que para nós é sagrado e ajuda também a trazer coisas boas para dentro da aldeia. Essas vozes vão nos guiar. Portanto, a contribuição que podemos dar enquanto psicólogas é dar voz, ser sensível com esses povos. Não é impor a Psicologia europeia-ocidental, que aprendemos fora da aldeia e, sim, somar juntos nas lutas, dar uma escuta inclusiva respeitando os modos de sentir pensar e agir a cultura de um povo. Cada um de nós tem suas especificidades culturais. Tudo começa pelo respeito, pelo lugar do outro, acolher. Acredito muito que para fazer a diferença na Psicologia devemos respeitar, dar uma escuta realmente inclusiva para que seja realmente diferenciada.



– CRP PELO INTERIOR –