Entrevista: Gab Lamounier reflete sobre avanços e desafios para a Psicologia em relação aos sujeitos trans e dissidentes de gênero

Psicólogo também aponta questões que devem entrar na ordem do dia do Sistema Conselhos de Psicologia e da categoria

Na esteira da Visibilidade Travesti e Trans, celebrada em 29 de janeiro, o Conselho Regional de Psicologia – Minas Gerais (CRP-MG), como todo o Sistema Conselhos, assume a importância da pauta, afinal, Direitos Humanos são a base do Código de Ética Profissional. Desde 2018, a partir da Resolução CFP 001/2018 , este compromisso ganhou reforços, mas ainda há muito trabalho a ser feito.

Para traçar um panorama do atual contexto, entrevistamos o psicólogo e conselheiro do CRP-MG, Gab Almeida Moreira Lamounier. Como se descreve, ele está no mundo a partir das redes de amizade e fortalecimento mútuo. É graduado em Psicologia e mestre em Psicologia Social (UFMG). Atua como analista no consultório particular e também na construção coletiva da Akasulo – um centro de convivência para a comunidade LGBTIA+ de Belo Horizonte e região metropolitana.

A Organização Mundial de Saúde (OMS) oficializou em 2019, durante a 72ª Assembleia Mundial da Saúde, em Genebra, a retirada da classificação da transexualidade como transtorno mental da 11º versão da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas de Saúde (CID). A partir daí, cada país teria até 1º de janeiro de 2022 para se adaptar à nova CID. A edição anterior estava em vigor desde maio de 1990, ano em que o termo “homossexualismo” foi removido da lista e deixou de ser entendido como doença. Em termos práticos, você percebe avanços depois dessa medida?

As mudanças são mais no campo simbólico, precisamos avançar muito. Importante destacar que as mudanças no CID são resultado de muita resistência do movimento social internacional. Existe uma campanha internacional STP (Stop Trans Pathologization), que é um grupo de ativistas trans e intersexo que tem feito esse debate da despatalogização das identidades trans. E essa mudança do CID, na verdade, tira a transexualidade da categoria de transtornos da saúde mental e leva para o campo de transtornos da sexualidade. Então, a transexualidade continua constando como patologia nos manuais de saúde. Quando a transexualidade vai para o campo da sexualidade recebe o nome de incongruência de gênero. Ou seja, ainda partem de um paradigma de que existe um desvio, um sofrimento. A Medicina e o campo Psi (Psicologia, Psicanálise e Psiquiatria) são historicamente responsáveis por construir essa ideia de que a transexualidade seria uma patologia, um desvio, um desencontro entre mente e corpo. Essa ideia é falsa e como ainda consta nos manuais também está presente na formação dos profissionais e na maneira como vão lidar com as práticas de cuidado.

O que a Psicologia tem de mais desafiador, no momento: consolidar a importância da despatologização ou melhorar sua escuta em relação às demandas das pessoas trans? Ou as duas situações?

Não é possível falar do ponto da despatologização separado do ponto da escuta. A despatologização não pode ficar só no campo do simbólico, ela tem que ir para o campo das práticas. As práticas têm que partir de um paradigma despatologizante. O maior desafio tem sido construir uma escuta, uma possibilidade de encontro com o sujeito que não parta de um paradigma patologizante, de que o sujeito trans vai estar em sofrimento, de que precisa de acompanhamento médico, psicológico. Essa é uma noção falsa. Essa ideia da compulsoriedade, de que logo que um sujeito trans começa a se nomear assim ou a se perguntar se é trans e já indicarmos a Psicologia para estar nesse lugar da escuta é um paradigma patologizante. De antemão, achamos que por ali ser sujeito trans inerentemente haverá sofrimento. Essa é a radicalidade que temos que tomar como horizonte: a transexualidade não está ligada com o sofrimento necessariamente, então não tem que estar ligada com o campo do cuidado necessariamente. Quando conseguirmos fazer a escuta do sujeito partindo desse lugar de que ele vai trazer muitas outras questões além da questão de gênero, teremos um bom ponto de partida. É levarmos a despatologização para a prática.

O que há de mais complexo para a Psicologia na compreensão do saber-fazer durante as práticas dos atendimentos às pessoas trans? Desconstruir preconceitos próprios seria um ponto fundamental?

Na minha opinião, o que há de mais complexo é conseguir compreender que toda a nossa base teórica e nossa ciência ocidental – que organiza a profissão Psi (Psicanálise, Psicologia e Psiquiatria) e a Medicina – possuem a cisnormatividade como orientação geral. A ciência construiu nos últimos 300 anos, essa ideia de um humano binário, dividido em apenas dois corpos, que tem a branquitude, a heterossexualidade e a cisgeneridade como horizonte normativo.

Essa é a maior questão: conseguir fazer uma dança entre a desconstrução epistemológica, os nossos paradigmas que sustentam e organizam nosso saber fazer, a nossa ciência e a nossa prática, para compreender que ela está completamente infectada por essa visão normativa da cisheteronorma, fazendo um pouco esse jogo entre conseguir aceitar quais são as ferramentas que nos podem ser úteis, adaptando-as para a realidade brasileira, a partir de um contexto que é decolonial. É necessário pensar como podemos ter práticas de cuidado que são diferentes das europeias do século passado. E, ainda, dentro do próprio Brasil, nos contextos urbano, de favela, rural e de cidades ricas. São contextos e ferramentas diferentes que precisamos considerar para realizar uma prática de cuidado efetiva.

É conseguirmos assumir com radicalidade que a epistemologia que nos baseia, que o paradigma que sustenta nossas práticas, apostam na cisgeneridade como norma, vêem os corpos humanos como se só existissem dois tipos. No entanto, desde milhares de outras sociedades e temporalidades sabemos que existem diferentes tipos de corpos e diferentes maneiras de existir no mundo.

Portanto, eu colocaria que esse é o maior dos nossos desafios: assumir mais a diferença e menos a normalização.

Assimilar as experiências das pessoas trans de forma integral, atravessadas pelas questões da identidade de gênero, mas também as ultrapassando, até a interseccionalidade com as questões de classe e étnico-raciais, ainda é desafiador para a Psicologia? Se sim, por quê?

Acredito que o desafio seja escutar um sujeito na sua integralidade porque nós ainda nos apoiamos em paradigmas que são patologizantes. Ou seja, ao enxergarmos um sujeito trans, partimos para uma escuta que localiza que tudo que se refere a esse indivíduo tenha relação com questões de gênero. Da mesma forma que, ao escutar uma pessoa negra, por vezes é colocado que todas suas questões são relativas à racialidade.

O campo psi não consegue dar conta da complexidade de um sujeito trans porque já está colocado, de antemão, que a transexualidade é uma questão, um problema a ser compreendido e elaborado. É preciso abertura, pois por vezes, aquela pessoa vai estar ali presente para falar de outros temas.

Então creio que esse é o desafio. Podermos realmente localizar o sujeito na sua interseccionalidade, com todos os cruzamentos e marcadores que compõe sua identidade, não partindo do pressuposto de que irá encontrar ali um sofrimento relativo ao gênero. Nós estamos presentes para ouvir o indivíduo de acordo com que surge livremente no encontro entre o sujeito e a(o) psicóloga(o).

Para encerrar, na sua opinião, de que forma o Sistema Conselhos de Psicologia pode ainda atuar para contribuir com a categoria na busca por melhorias na qualidade de vida das pessoas trans?

Tanto o Sistema Conselhos de Psicologia como a categoria precisam compreender que existem profissionais trans e dissidentes de gênero. Em todos os materiais e em todos os momentos de fala percebemos a existência de uma divisão entre profissionais psi e sujeitos trans, em que estes últimos são colocados no lugar de objeto de estudo ou de sujeito que está sendo acompanhado em uma psicoterapia, no ambiente institucional de saúde.

Também é preciso reconhecer que sujeitos trans cada vez mais têm ocupado o lugar de cuidadores, de profissionais, de sujeitos da construção das políticas. Então poderia ser feita essa abertura, esse incentivo e porque não dizer, essa reparação histórica, porque entendemos que o campo psi tem uma responsabilidade no processo de patologização das identidades trans. Foram médicos e psicólogos que criaram a categoria, o diagnóstico da transexualidade, que localizaram certos sujeitos diante deste diagnóstico e cercearam o acesso dessas pessoas a direitos, à saúde, ao afeto.

É, portanto, responsabilidade histórica do Sistema Conselhos reparar toda essa exclusão e violência, reconhecendo que as pessoas trans são sujeitos de suas próprias vozes e também capazes de ocupar esses espaços de decisão, poder e gestão.

Podemos ainda, valorizar cada vez mais a Resolução 001/2018, que está fazendo cinco anos. É uma ótima resolução da maneira como foi construída. Veja que tem o recorde de ser a normativa atacada mais rapidamente: em menos de 24 horas já tinham tentativas de deslegitimação no campo do jurídico. Precisamos que ela seja fortalecida a partir do aumento de sua visibilidade, colocando-a na formação dos profissionais.

Precisamos sempre garantir os espaços de conversa nos quais as pessoas trans estejam presentes para desmistificar cada vez mais esse lugar da patologização. Pessoas trans podem falar por si.



– CRP PELO INTERIOR –