28 jan Entrevista: o atendimento psicológico às pessoas trans demanda uma escuta que provoque o aprendizado
Psicóloga e doutoranda em Psicologia, Brune Coelho, faz uma análise crítica das evoluções propiciadas pela Resolução CFP nº 001/2018 e aponta que ainda há muito desconhecimento sobre o assunto
Dia 29 de janeiro é o Dia da Visibilidade Trans, quando se procura chamar ainda mais a atenção para a importância da promoção da cidadania das pessoas travestis, transexuais (homens e mulheres trans) e não-binárias (que não se reconhecem nem como homens nem como mulheres) e para o combate à transfobia.
Nesta entrevista, a psicóloga, Brune Coelho, mestra e doutoranda em Psicologia pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), onde integra o Centro de Referência LGBTQIA+, reflete sobre as contribuições da sua área para a despatologização das identidades trans e luta contra as exclusões impostas pela sociedade. “O nosso trabalho vem para a desconstrução disso, num processo reflexivo que possibilite que as pessoas possam ter autonomia e protagonismo sobre as suas vivências e de seus processos com seu corpo”, ressalta.
A Resolução CFP Nº 001, de 29 de janeiro de 2018, que estabelece normas de atuação para as psicólogas e os psicólogos em relação às pessoas transexuais e travestis está completando três anos. Quanto a Psicologia avançou até aqui, em relação ao atendimento a essa população?
É uma resolução recente, que ainda demanda mais conhecimento sobre ela, mesmo diante dos diversos movimentos de divulgação por parte dos Conselhos Regionais e do próprio Conselho Federal de Psicologia. Acredito que enquanto dispositivo jurídico de garantia das pessoas trans e travestis do Brasil, em relação às questões de saúde e cuidado mental e suas demandas psicológicas, ela é um grande marco e avanço. Mas ainda precisa ser introduzida nas bases curriculares dos cursos e nos centros formativos em Psicologia. Nesses três anos, eu ainda vejo desconhecimento dessas demandas, fora as pessoas que trabalham diretamente com a população LGBTQIA+. A resolução trouxe avanços, inclusive subsídios para pensar em uma prática mais inclusiva e respeitosa, só que temos profissionais que não a conhecem. Apesar dos esforços, seria interessante reafirmar esses documentos basilares.
O conhecimento sobre identidade e expressão de gênero afeta positivamente a qualidade do cuidado à população travesti e trans?
Sim. Pensar a questão da ética em Psicologia é percorrer a ética para quais sujeitos estamos trabalhando. Esse sujeito não necessariamente é cisgênero e heterossexual, assim como, não necessariamente, é branco ou homem. Temos que pensar para além desses marcadores, localizar esses sujeitos, perpassar uma autocrítica, inclusive da própria Psicologia, que já foi utilizada como instrumento da manutenção das normativas sobre gênero, sexualidade e sobre os corpos. Além disso, encontrando esses sujeitos com as demandas sociais, históricas e políticas, começa-se a entender o processo de construção desse corpo, que ele não é meramente uma matéria biológica, mas atravessado por uma série de simbologias e marcas, que avançam sobre questões de gênero e de como o corpo se apresenta. Assim, conseguimos entender e romper com a lógica cisgênera: que se você nasceu com um pênis, você vai se reconhecer como um homem, e se você nasceu com uma vagina, você deve se reconhecer como uma mulher. Esse raciocínio é limitador e violador. Gera uma série de sofrimentos e adoecimentos psíquicos intensos para a população que não é cisgênera, trans, travestis, pessoas de identidade não binárias. Naturaliza esses processos e vê nos hormônios ou nos caracteres secundários sexuais, a identidade do sujeito. A partir disso, repensamos, inclusive, os direitos das pessoas intersexuais que fogem dessa convenção criada dentro desse conceito de sexo para nomear o que é corpo masculino e feminino. O corpo intersexual é um corpo em variação desses processos. Também permite pensar as identidades para além dos masculino e feminino hegemônicos. Identidades que podem circular. E aí, entra o gênero fluído, identidades não binárias, agênero, bigênero e outras possibilidades de identidades que ainda hoje são psicopatologizadas.
Como ainda ocorrem esses processos de psicopatologização?
Temos a tendência de chamar as pessoas que não performam o binarismo de gênero como doentes, como se elas tivessem com algum problema ou confusas. Isso é um ranço e uma reatualização da psicopatologização das identidades trans. Ainda aceitamos as pessoas trans binárias, que performam o gênero masculino e feminino, mas dentro daquele gênero hegemônico e que, de alguma maneira, têm seus corpos mais próximos dos corpos cisgêneros. Só que esquecemos que essas questões não passam só por isso, que há outras multiplicidades dentro do segmento T e que elas são ignoradas. Acredito que a potência de discutir processos de psicopatologização e de trazer a pauta da despatologização agora é pensar como o binarismo também é uma forma de patologização das identidades. É necessário criar um outro crivo dentro da comunidade T e passar a aceitar mais não só as binárias e quem consideramos coerentes dentro dos nossos padrões cis-hétero-normativos. Questionar isso é uma forma de trazer uma ética profissional que vá mais além e que esteja mais conectada com as demandas atuais dos movimentos sociais e dos processos sociais, históricos e políticos que vivenciamos na nossa sociedade.
Na sua opinião, quais são os principais aspectos a serem considerados por psicólogas(os) nos atendimentos a travestis e trans?
Acredito que são dois que merecem ser refletidos quando se pensa nas demandas de pessoas trans e travestis na nossa sociedade, inclusive em questões de saúde mental e de todas as modalidades possíveis em que podemos estar em contato com esses sujeitos. Primeiro, é não individualizar questões que são sociais, históricas e políticas, como questões de transfobia institucional, de transfobias cotidianas, que diminuem a dor e sofrimento daqueles sujeitos. Nesse ponto, é necessário a empatia de se colocar no lugar daqueles sujeitos e repensar essa lógica e como a sociedade é co-responsável na produção dos sofrimentos dos sujeitos trans. Não é um sofrimento vivido sozinho, é um sofrimento alimentado socialmente. Criamos a pessoa trans no sentido de que ela deve sofrer, odiar seu corpo. Essas demandas individuais se misturam com normativas coletivas. O nosso trabalho vem para a desconstrução disso, num processo reflexivo que possibilite que as pessoas possam ter autonomia e protagonismo sobre as suas vivências e de seus processos com seu corpo. O segundo ponto é não tornar essas experiências exóticas e universalizantes. Por exemplo, criar um protocolo de como as pessoas trans ou travestis devem ser na sociedade. Entender essas especificidades dentro de uma identidade política mais ampla, ver quais são os pontos de convergência e quais são os que ampliam. É humanizar, porque tornar essas experiências muito peculiares e muito distintas, é uma perspectiva limitante do sujeito, que não entende as outras identidades para além das suas demandas de identidade de gênero. Compreender todas as nuances. A identidade trans é um dos aspectos importantes dos processos subjetivos desses sujeitos, mas não são os únicos. Há outras demandas para além, inclusive das identidades de gênero. Então é andar no meio da corda: não pender tanto para uma questão reducionista e reduzir a pessoa apenas a sua identidade de gênero, mas, também, não individualizar muito o sujeito a ponto de esquecer e negligenciar essas questões sociais, históricas e políticas, que ainda geram muito adoecimento na nossa sociedade.
Então, como colaborar para desenvolver ideias, sentimentos e reações afirmativas junto a essas pessoas?
Acredito que o processo formativo depende de conviver com movimentos sociais, de ler mais produções de pessoas trans, identificar o que elas estão produzindo. Também buscar conhecimentos que sejam mais transcentrados, ou seja, conhecimentos que sejam construídos a partir de uma dinâmica trans e que não compactuam com a cisnormatividade como os antigos estudos psicopatologizantes faziam o tempo todo. Um primeiro ponto é ter uma leitura crítica para exercer um trabalho com dignidade, com ética, que gera potência de transformação com as pessoas trans. O segundo que eu gostaria de destacar seria a questão de, de fato, ouvir e aprender com aquelas histórias, dar a voz para o sujeito o tempo todo. Escutar essas histórias é muito interessante e aprender com elas, é entender. Na maioria, as pessoas e profissionais da Psicologia são cisgêneras. Então, é ouvir a partir de um outro olhar, mudar a ótica. Isso auxilia. Acredito muito na construção coletiva, que desenvolver o orgulho de ser uma pessoa trans na sociedade deve ser fomentado o tempo todo. Para isso, vale utilizar filmes, livros, meios e produções audiovisuais que ajudem a fortalecer o sujeito nesse sentido. Talvez, indicar grupos, grupos de militância, páginas da internet que têm uma visão interessante sobre isso que podem ajudar nesse processo de fortalecimento desses sujeitos. A ideia é mostrar que é ok ser uma pessoa trans na sociedade, que está tudo bem e não é necessário vir com aquele discurso: “apesar de eu ser trans, eu sou uma pessoa legal”. Não. Eu sou uma pessoa realmente trans, eu me orgulho disso. É desenvolver esse orgulho e essa potência do ser trans, que é libertadora e, inclusive, rompe com normas. Eu acredito que essa seria a principal reação mais afirmativa para a gente pensar junto com essas pessoas. Por fim, vale a pena reiterar que é uma luta conjunta e coletiva e que tem sido muito importante a Psicologia se posicionar, inclusive para que as pessoas possam se sentir acolhidas por profissionais que vão entender suas demandas, desde como você vai tratar, pensar aspectos básicos em relação a nome e a pronome. É um ganho começar esse processo de desconstrução, ouvir um pouco mais, questionar algumas verdades que temos naturalizadas sobre corpo, sobre identidade, sobre o que é ser homem ou mulher na sociedade, inclusive sobre os binarismos que nos atravessam, sobre corpos masculinos e femininos, sobre identidades masculinas e femininas, sobre as performances de gênero. Questionar isso é um grande começo. No campo da despatologização seria interessante pensar como as vivências trans e travestis estão sendo vistas e, principalmente, as vivências não binárias; como elas ainda são vistas na contemporaneidade e como estamos criando a nossa lente analítica para poder enxergar esses espaços, porque talvez seja necessário trocar esses óculos dessas lentes analíticas para outros que sejam mais inclusivos. Que permitam enxergar a partir do olhar do outro e não do nosso olhar que, às vezes, é carregado de preconceitos.
O Conselho Regional de Psicologia – Minas Gerais (CRP-MG) atua nesta pauta por meio da Comissão de Orientação em Psicologia, Gênero e Diversidade Sexual. Acompanhe sua agenda, participe das reuniões e eventos divulgados no site e plataformas de redes sociais. Saiba mais sobre a Comissão em: https://crp04.org.br/o-conselho/comissoes-e-gts/comissao-de-psicologia-genero-e-diversidade-sexual/