Os desafios das políticas públicas para mulheres: quando proteção e violação andam juntas

Série de conteúdos especiais Carolina MesquitaNesta edição da série de conteúdos especiais sobre Psicologia e políticas públicas, o Conselho Regional de Psicologia – Minas Gerais (CRP-MG) entrevista a psicóloga e mestra em intervenções clínica e social, Carolina Mesquita, sobre políticas públicas para mulheres.

O 11º Anuário Brasileiro de Segurança Pública apresentado em 2017 revela a redução de 10,3% em investimentos feitos pelo governo federal em segurança pública. Trata-se da maior redução verificada desde que o Anuário começou a ser elaborado, em 2007. O mesmo relatório aponta que uma mulher é assassinada a cada 2 horas no país, são cerca de 4.606 casos por ano. No entanto, apenas 621 casos foram classificados como feminicídio, demonstrando as dificuldades de implementação da Lei Nº 13.104/2015, que inclui o feminicídio no rol dos crimes hediondos.

As políticas públicas para mulheres estão entre os temas que serão discutidos nos eventos preparatórios para a etapa Sudeste do IX Seminário de Psicologia e Políticas Públicas. Os encontros estão acontecendo em todas as subsedes do CRP-MG, acesse o calendário de atividades. Já o Seminário, será realizado nos dias 7 e 8 de junho, em Belo Horizonte, acompanhe as informações no site do Conselho.

O Brasil tem um baixo índice de representatividade das mulheres na política institucional. Como essa ausência interfere na criação de políticas públicas para mulheres?
É preciso salientar que a participação no meio político diz respeito a relações de poder. A ausência das mulheres neste espaço faz com que as demandas específicas das mulheres sejam tratadas por pessoas que não têm conhecimento sobre elas, ou seja, são homens discutindo sobre o aborto; homens discutindo sobre a violência perpetrada contra mulheres; homens falando sobre as condições de trabalho feminino; homens falando sobre a realidade que eles não conhecem, que é a realidade das mulheres, de ser mulher e ser violentada muitas vezes por esta condição.

Quais avanços e desafios podem ser observados nas políticas públicas para mulheres?
O principal avanço é o reconhecimento da mulher como sujeito de direito, cuja construção social, cultural e histórica a coloca num lugar de desigualdade em relação homens. Isso favorece que sejam criadas políticas diferenciadas para tratar as desigualdades às quais as mulheres estão submetidas. Entretanto, o machismo ainda está bastante enraizado na nossa cultura, o que dificulta que algumas mudanças aconteçam, tendo em vista que as políticas públicas são desenvolvidas por pessoas, inseridas nesta lógica machista.

A criação das Delegacias Especializadas no Atendimento à Mulher (DEAMs) é um ótimo exemplo de avanço no que tange a políticas de combate e enfrentamento à violência contra as mulheres, todavia, o fato de haver uma delegacia especializada não garante que as mulheres não sejam revitimizadas ou tenham a violência sofrida desqualificada por aquele que a atende. Na minha pesquisa de mestrado ouvi os policiais da DEAM de uma cidade da região metropolitana de Belo Horizonte e vários deles não têm conhecimento sobre o ciclo de violência e a relação deste ciclo com o processo de ruptura e retomada da relação. O que muitos disseram era que as mulheres, à medida que iam várias vezes à Delegacia para registar ocorrência em desfavor do mesmo companheiro perdiam o “crédito” da sua fala. Ou seja, há uma desqualificação deste discurso e um menosprezo da violência vivida. Mas também podemos encontrar o oposto disso, que é a estagnação das mulheres em situação de violência no lugar de vítima estanque dessa violência. Assim, passam a ser desconsideradas qualquer ação ou vontade da mulher, como se ela precisasse a partir daquele momento, que alguém tome todas as decisões por sua vida, sem qualquer participação efetiva da mulher.

A Lei Maria da Penha e do feminicídio são grandes avanços, mas que ainda enfrentam muitos problemas na sua execução. Como isso interfere na decisão das mulheres e familiares a buscar o respaldo da lei?
A crença de que a denúncia não irá resultar na punição do homem autor de agressão ou da morte das mulheres ainda é um grande dificultador para realização da denúncia. Outro ponto é a demora no nosso sistema judiciário para dar respostas e proferir decisões. E ainda há um problema, a meu ver primário, que diz respeito ao descaso no atendimento das mulheres que sofrem violência pela Polícia. As mulheres ainda hoje escutam frases do tipo “Você aqui de novo?”, “Apanhou porque gosta”, “Se teve filho com ele é porque gosta e agora tem que aguentar”. E nenhuma pessoa merece passar por esse julgamento, ainda mais após viver situações de violência.

O que precisamos pensar é que as mulheres que estão nessa situação escolheram se relacionar com aquele companheiro, e não apanhar dele. E denunciar significa muitas vezes assumir que a escolha por viver com aquela pessoa deu errado e que o príncipe encantado virou sapo. No entanto, quando se procura ajuda para denunciar as mulheres são julgadas e condenadas por um olhar machista que ainda acredita que a equação é simples: apanhou + denunciou = ruptura, e não é bem assim. Quando falamos na violência contra as mulheres, falamos numa violência perpetrada a partir de uma relação desigual de poder estabelecida entre homens e mulheres e que foi aprendida social e culturalmente. Por isso, essa equação não é tão simples assim.

Como você avalia a distribuição de Delegacias de Atendimento à Mulher no país?
Não há Delegacias Especializadas em todos os municípios do país e, além disso, muitas delas não funcionam em regime de plantão. Na própria região metropolitana de Belo Horizonte, somente a DEAM da capital funciona 24 horas, nos demais municípios encerram o expediente às 18h e não abem no final de semana. Minha pesquisa de mestrado mostrou que há um hiato entre o que prevê a Norma de Padronização das DEAMs e a prática das Delegacias. O efetivo de policiais quase nunca é suficiente para atender a alta demanda de denúncias, as condições do espaço são precárias e falta formação específica para os policiais que atuam na área de violência contra as mulheres.

Como as(os) profissionais da Psicologia podem contribuir para o melhor atendimento das mulheres nas Delegacias?
Penso que as(os) profissionais da Psicologia têm um importante papel tanto nas Delegacias, quanto em qualquer política pública que atue com as mulheres, precisamos pensar sobre as diversidades de mulheres a que estas políticas se destinam, bem como ações a partir dessa especificidade. Precisamos nos atentar para o fato de que também somos parte da sociedade machista e desigual e nossa escuta deve ser capaz de contemplar as interseccionalidades. Devemos ser convocados a pensar estratégias e pensar o impacto que esses sujeitos sofrem, além de pensarmos como nós alimentamos essas práticas machistas.

 



– CRP PELO INTERIOR –