06 set “Suicídio é uma questão urgente de saúde pública”
Confira entrevista com a conselheira e coordenadora da Comissão de Psicologia e Clínica do CRP-MG, Mariana Tavares, sobre contribuições da Psicologia na abordagem do suicídio
O suicídio é uma questão de saúde pública. O grande problema que o cerca é o tabu. Os inúmeros preconceitos e julgamentos interferem negativamente no cuidado em nossa sociedade. A Psicologia se coloca, então, como uma das principais profissões da saúde capaz teórica, técnica e eticamente de abordar e atuar na prevenção e também no cuidado. O Conselho Regional de Psicologia – Minas Gerais (CRP-MG), atento e implicado com a questão, inicia uma campanha dirigida às(aos) psicólogas(os) e à sociedade. O ponto de partida da ação é a entrevista com a psicóloga, conselheira e coordenadora da Comissão de Psicologia e Clínica do CRP-MG, Mariana Tavares.
O que é importante destacar em relação à temática do suicídio?
O suicídio é um fenômeno universal e humano. Todas as civilizações o registram. A forma de explica-lo e de inserí-lo numa narrativa cultural é que vai se moldando.
Precisamos uma atitude despida de arrogância e de vaidade neste momento pois o avanço tecnológico tem colocado questões ainda não suficientemente compreendidas sobre seu impacto nas formações de subjetividade, apontando para uma relativa falência dos modelos explicativos utilizados até aqui.
Além disso, o neoliberalismo econômico e seus sujeitos morais apontam para uma forma de organizar a vida, em que os sujeitos se tornam responsáveis individuais e exclusivos sobre seu “sucesso” e “insucesso”. O interesse capitalístico em criar capacidade de consumo e em reduzir a perspectiva de igualdade entre os homens e mulheres também vem dissolvendo nossas noções de vínculo e pertencimento.
A partir destes enquadramentos ,temos que localizar a discussão do suicídio nesse modo de compreender a vida numa sociedade tecnológica, num sistema neoliberal de formação de sujeitos isolados, competitivos e solitários em que existe um fobia da morte, como um sinal de fracasso desta sociedade voltada para o sucesso.
O suicídio é uma questão grave de saúde pública e é um desafio para as(os) profissionais que nela atuam. A Psicologia é uma das profissões que deve integrar as equipes multidisciplinares no trabalho cuidadoso de promoção da vida, considerando a grande complexidade dos comportamentos suicidas.
É possível explicar ou enumerar razões para os comportamentos suicidas?
O suicídio é um fenômeno de múltipla causalidade, não podendo ser explicado por uma única vertente. São causas psíquicas, psicossociais e até mesmo circunstanciais. Mas nunca podemos atribuir uma única causa ao ato suicida. Não podemos adotar posições simplificadoras ou reducionistas. Cada suicídio representa um enigma. Por essa razão, a Psicologia tem muito a contribuir para a prevenção. Nossa profissão tem plenas condições teóricas, técnicas e éticas para pautar a temática de maneira cuidadosa no sentido de reduzir preconceitos e julgamentos, além de construir novas possibilidades de diálogo com a sociedade, que ultrapassem a visão religiosa e jurídica. Nunca é mais alertar para os perigos da medicalização e patologização da vida, e a psicologia comprometida socialmente tem que estar permanentemente atenta a estas atitudes que reproduzem um modo de ver e de viver a vida, que apregoam que existe um modo certo, normativo, higiênico, que conduz ao “sucesso”. Desta maneira, precisamos estar atentos e inquietos para desconstruir uma posição de saber que ensina as pessoas o jeito certo de sentir e de reagir. A vida é muito maior, a vida é real e de viés, como diz Caetano Veloso.
Pode nos explicar mais sobre os impactos das visões religiosa e jurídica sobre o suicídio?
A visão religiosa, muito presente na civilização, marcada pela ideologia judaico- cristã associa o suicídio a um pecado, simplesmente desqualificando a dor. O ponto de vista jurídico vem associar o suicídio a um crime, o assassinato de si. Essa é uma visão que gera muito preconceito e que criminaliza inclusive a família, retirando dela o direito ao luto e as vezes a cobertura dos seguros. A Psicologia deve cuidar dessas pessoas, dos familiares como sobreviventes e promover espaços de escuta, quebrar o ciclo do silêncio. Nunca devemos perder de vista que suicídio não é crime nem pecado: é uma questão de saúde pública.
A ruptura com o silêncio pode ser considerada a principal porta da prevenção do suicídio?
Em um segundo momento sim. Tem uma questão muito importante que antecede a prevenção por meio da linguagem. Falar de prevenção do suicídio é pensar em pelo menos dois níveis: o primário, que é a promoção à saúde, tal como a Constituição preconiza, ou seja políticas sociais e econômicas que garantam saúde e diminuam o risco de agravos. Nesta perspectiva, devemos lembrar o que está na própria lei de criação do SUS, que coloca que ter saúde é ter direito a moradia, emprego, renda, educação, lazer.
Assim, a maior prevenção é garantir direitos, garantir políticas públicas de saúde e também de assistência, de educação, de moradia, de saneamento, de trabalho e renda. Promover a qualidade de vida. Fazer com que a vida tenha sentido.
Neste contexto, a Psicologia se implica ao lutar pela criação e manutenção desses direitos de cidadania. Prevenir o suicídio é combater a violência no trabalho, a violência nas relações cotidianas. E muito especialmente, prevenir o suicídio é combater a violência do machismo, racismo e LGBTfobia.
Ainda não temos estudos epidemiológicos que abordem estas violências com análise específica dos dados. As formas de registro de óbito são pouco confiáveis e não podemos ignorar a sub-notificação.
E em nível secundário de prevenção, ou seja, a partir do problema já identificado, precisamos cuidar dos grupos que apresentam maior crescimento nas taxas de suicídio, que na atualidade são os jovens e os idosos. Nas políticas públicas estamos então falando da rede de Saúde, em todos os níveis, na rede de atenção psicossocial, mas também na atenção primária.
Neste nível, então, vamos atuar na quebra do silêncio, pois falar propicia ressignificar a própria história e nomear o sofrimento. Colocar em palavras permite a compreensão de tudo que o cerca; oportuniza se sentir mais ligado à própria história e dar novos sentidos à própria vida; e propicia sair da zona de (des)conforto, dos rótulos, padrões e normas.
Por quais razões os grupos que atualmente apresentam maior incidência de suicídio são jovens e idosos?
Verificar as taxas de suicídio nestes dois extremos do ciclo de vida nos obriga algumas reflexões sobre a sociedade contemporânea.
No caso dos adolescentes vamos considerar que vivemos na era do espetáculo, da ditadura da beleza e do imediatismo das relações de consumo. A internet, que tem inúmeros benefícios, também propicia uma ideia equivocada de felicidade e ainda viabiliza a chance de ser outra pessoa, de ser alguém que se enquadre em padrões de sucesso. E aí lanço a pergunta: qual é o valor dos ideais frente à quantidade dos objetos de consumo? Temos outro ponto muito grave que é o imediatismo aliado à intolerância ao sofrimento e à frustração. Não tem existido um intervalo entre a vontade e a satisfação.
Em relação aos idosos, vemos hoje uma grande desvalorização da experiência, frente ao discurso da ciência e também a perda de relevância social do idoso porque deixou de ser produtivo. As gerações que hoje tem 60 anos ou mais tiveram suas vidas pessoais muito identificadas ao trabalho. A aposentadoria muitas vezes significa esvaziamento de sentido da vida. Somam-se ainda a solidão, o abandono, o medo da dor e a própria dificuldade em lidar com o envelhecimento próprio e do familiar. Não menos importante, o impacto da ditadura da juventude também impacta quem já deixou de ser jovem.
Nesse cenário, a Psicologia tem papel fundamental ao dar visibilidade para o assunto?
Sim. A correta abordagem do assunto é necessária, pois ajuda a salvar vidas e evita o sofrimento de muitas famílias. Evitar falar sobre suicídio quase nunca é a melhor decisão. Ao abordar o assunto não se deve falar sobre métodos nem causas, muito menos dar ênfase ao suicídio como uma saída. Promover espaços de fala é fundamental. Os espaços de fala devem ser protagonizados pelos sujeitos em sofrimento e não por “autoridades” no assunto. Afinal, o saber sobre si está em quem sofre e não em qualquer outro sujeito, ou ciência ou mesmo religião.
A linguagem utilizada pelo profissional deve ser atenta e cuidadosa. Não existe tecnologia mais avançada que a linguagem.