23 fev Entrevista: conselheiro Hudson Carajá reflete sobre o papel da Psicologia na defesa dos direitos dos povos indígenas
Psicólogo convida categoria à reflexão. Cenário de violações é preocupante
Em setembro de 2022, o membro da Comunidade Indígena Carajá e psicólogo, Hudson Carajá, tomou posse como conselheiro do Conselho Regional de Psicologia – Minas Gerais (CRP-MG), um marco para a autarquia. Um mês antes, todo o Sistema Conselhos de Psicologia indicava seu objetivo de concretizar uma atuação mais qualificada por parte da categoria junto aos povos indígenas, publicando as Referências Técnicas para Atuação de Psicólogas junto aos Povos Indígenas.
Ao mesmo tempo, denúncias de graves violações de direitos ganham repercussão mundial. Em Minas Gerais, comunidades são afetadas pelos crimes ambientais decorrentes da mineração. Em Roraima, uma enorme crise humanitária atinge o povo Yanomami. Pelo menos 570 crianças já morreram contaminadas por mercúrio e também de fome, segundo o Ministério dos Povos Indígenas.
Para refletir sobre esse cenário, entrevistamos o conselheiro que é coordenador conjunto das Comissões de Orientação em Psicologia e Relações Étnico-Raciais e Psicologia do Esporte do CRP-MG.
60 anos da Psicologia – A entrevista integra o conjunto de ações que o CRP-MG está promovendo para marcar os 60 anos de regulamentação da Psicologia no Brasil. Periodicamente, o Conselho tem publicado conteúdos que abordam assuntos importantes para o campo profissional e científico. A série já abordou avanços e desafios para a Psicologia em relação aos sujeitos trans e dissidentes de gênero.
Neste mês temos a data afirmativa do Dia Nacional de Luta dos Povos Indígenas, 7 de fevereiro. O CRP-MG, busca marcar no sentido de lembrar para a categoria e toda a sociedade da importância da proteção dos direitos e da preservação da cultura dessas pessoas. Você compõe o plenário da autarquia fazendo a representação indígena. O que significa para você todo este movimento, enquanto psicólogo?
É um movimento que tem uma enorme importância e relevância, dado o contexto que temos observado. Começo estimulando todes a pensarem em quais momentos da vida, seja em contextos educacionais, familiares, midiáticos, entre outros, quando tiveram a oportunidade de conhecerem sobre temáticas a respeito dos povos indígenas, mas não nas perspectivas folclóricas e fantasiosas as quais sempre ilustraram o que é uma pessoa indígena, mas de ouvi-las no que têm para dizer a respeito de si mesmas e sobre a sua realidade. As ações realizadas pelo CRP-MG são importantíssimas pelo seu propósito de levar para a categoria essas discussões que muito, mas muito infelizmente, ainda não são de conhecimento de todes os profissionais, e isso é algo que precisamos re-conhecer para intervir. É necessário discutir o tema para que se tenha mais esta ciência, de que existe uma data definida em referência à Luta que estes povos têm no cenário nacional, o porquê desta Luta existir e se fazer necessária até os dias atuais, bem como o quê essas pessoas reivindicam nesta Luta, toda pautada em Direitos Humanos, e principalmente compreender que a pessoa indígena não é somente aquela que vive em territórios específicos, em língua portuguesa chamados de aldeia, e que tem características fenotípicas e culturais como as mostradas em filmes e novelas, mas entendendo que a pessoa indígena é indígena onde ela estiver. Enquanto psicólogo, penso que são movimentos como esses que podem contribuir para a tão necessária informação aos profissionais que irão atuar no contexto nacional, tão marcado pelas várias formas de racismo e exclusão direcionadas às pessoas indígenas, a fim de trabalhar para a promoção de saúde para estes sujeitos e suas comunidades, bem como para pessoas que se interessem pelas discussões.
Em fevereiro, o Conselho Federal de Psicologia publicou posicionamento sobre a grave crise humanitária que atinge o povo Yanomami. Qual é a importância desse tipo de medida por parte do Sistema Conselhos?
Pessoalmente me senti muito contemplado pela nota emitida pelo Conselho Federal de Psicologia, devido ao seu texto ser explícito ao denunciar o que tem ocorrido no território dos parentes Yanomamis: genocídio, fruto de uma política deliberadamente anti-indígena e necroliberal. Entendemos que políticas direcionadas aos povos originários por parte de diversos governos, desde a colonização deste território que hoje chamamos de Brasil, têm por objetivo a subjugação agressiva das comunidades que aqui já habitavam antes da chegada dos europeus. Algo que compartilhei com os atuais companheiros de plenário e posso dizer também neste espaço, apesar do trauma familiar que é o fato, é o de que eu e minha família da Comunidade Carajá só habitamos este território das Minas Gerais devido aos pais do meu avô, habitantes da Ilha do Bananal, sul do Tocantins, terem sido chacinados junto a outras pessoas de sua família, por fazendeiros que tinham o genocídio indígena como prática instituída e reforçada por uma sociedade racista. Desta maneira, o pai de minha mãe, tios e tias foram forçados a um processo migratório pela sobrevivência, vendo o terror acontecer em seu território natal, numa história recente que remonta todo o ímpeto colonizador e genocida desde 1500. Por esse motivo, a crise humanitária que acomete hoje os Yanomami nos sensibiliza de uma maneira que não consigo expressar em palavras. Finalizo então com a frase do parente Davi Kopenawa Yanomami, presente também na nota supracitada: “Vocês estão realmente escutando nossas palavras? Vocês, brancos, realmente escutaram nossas palavras, as palavras do povo da floresta?”.
Nos últimos anos houve uma escalada nas ameaças aos povos indígenas como os PLs do marco temporal e a autorização para mineração e grilagem em terras indígenas. Essas ameaças foram acompanhadas de discursos de ódio e racistas contra esses povos. Você avalia que as constantes ameaças podem elevar a incidência de problemas psicossociais entre os povos indígenas? Consegue elencar quais problemas são mais recorrentes?
O fenômeno do racismo é algo que temos que discutir muito mais. Muito mais mesmo! Aprendo bastante com o movimento Hip Hop, que tanto se baseia na luta dos Panteras Negras, e de referências para mim como o gigante profissional da saúde mental, Frantz Fanon, para compreender como o racismo afeta corpos e essencialmente subjetividades de pessoas não-brancas. Costumo dizer que uma das colonizações mais brutais e presentes na contemporaneidade é a de subjetividades, fazendo com que a autoestima e o olhar para si das pessoas indígenas sejam tão comprometidos. Os últimos anos de políticas anti-indígenas perpetradas pelos governos federais com certeza ainda vão reverberar por algum tempo no que diz respeito à relação da sociedade brasileira com os seus povos originários. As diversas e abomináveis frases do ex-presidente, que desde os seus primeiros anos em cargos públicos incita o extermínio e ódio aos povos indígenas, bem como suas ações negligentes em relação a essas pessoas tiveram como consequência a incitação do ódio em setores da população, bem como contribuíram para o sentimento de insegurança e constante ameaça sentida por pessoas indígenas em seus diversos contextos. Na atuação em nossa Comunidade aqui em MG, sobre pessoas indígenas em contextos urbanos, temos percebido como principalmente a autoestima é afetada nesses processos. Chegam até nós também diversas notícias de parentes, em outros estados e territórios, acerca de adoecimentos referentes à saúde mental e tentativas de suicídio, em decorrência de como estão vivendo e dos atravessamentos sociopolíticos e principalmente de caráter econômico e de acesso a recursos. Enfim, ainda é enorme nossa Luta, e por isso ela tem de ser tratada desta maneira.
Como você avalia o cenário brasileiro de pesquisas em Saúde Mental em contextos indígenas? A Psicologia brasileira tem se envolvido com esse tema com a devida atenção?
Acredito que um bom início sobre o assunto é admitirmos a sua complexidade. Num país com dimensões continentais, diversas culturas e uma presente herança colonial e escravagista, que valoriza os bandeirantes e se cala para os impactos violentos dos contatos destes com povos indígenas por exemplo, é difícil dizer que a Ciência, como um todo, trata com devida importância os povos originários do território brasileiro. Por vezes me perguntam: “como é a saúde mental de pessoas indígenas?”. Ora, é como a de outras pessoas, afinal somos pessoas. Porém, é necessário compreender os contextos aos quais estas pessoas estão inseridas, seus modos de ser nesses contextos, bem como entender suas queixas, que são específicas. Temos diversos textos e publicações na Psicologia que são excelentes, destaco as Referências Técnicas Para Atuação De Psicólogas(Os) Junto Aos Povos Indígenas, do Conselho Federal de Psicologia, que considero uma publicação potente a respeito do tema. Todavia, penso que estamos, como Psicologia brasileira, começando. E que ótimo que já houve este começo. Sempre coloco iniciativas de Letramento Racial em temáticas indígenas e ações visando informação de extrema relevância, e ainda aguardo o momento de vermos mais pessoas indígenas falando delas mesmas em ambientes e discussões acadêmicas, o que considero ser mais um passo muito importante.
Gostaria de acrescentar alguma outra observação a partir das reflexões sobre o tema ou ainda sobre o texto “O Dia Nacional de Luta dos Povos Indígenas”?
Gostaria de fazer um convite a todes para que conheçam um pouco mais sobre este assunto tão vital para nós, brasileiros. Aos colegas mineiros, que possamos conhecer mais sobre os povos originários que foram e são importantes para nosso estado e influenciaram o nosso Belo Horizonte, essa cidade bonita que tem ruas com nomes de etnias indígenas, que aparentemente são priorizadas para pessoas brancas com sobrenome europeu passarem por cima delas. E, finalmente, aos parentes indígenas, que possamos estar atentos e fortes. É natural os temores do presente em função dos acontecimentos que temos experienciado, mas que nossa Re-existência passe esta mensagem de forma bem nítida aos ímpetos colonizadores: nós (Re)Existimos!