Brasil enfrenta momento de retrocessos na descriminalização do aborto

Portaria do Ministério da Saúde traz mudanças nos procedimentos relativos ao aborto em caso de estupro

Há 30 anos, o 5º Encontro Feminista Latino-Americano e Caribenho, realizado na Argetina, instituiu o dia 28 de setembro como Dia de Luta pela Descriminalização e Legalização do Aborto na América Latina e no Caribe.

No Brasil, esse marco de 30 anos acontece num contexto bastante delicado e que traz implicações para psicólogas e psicólogos. No dia 27 de agosto, o Ministério da Saúde aprovou a Portaria 2.282, que posteriormente foi revogada pela Portaria nº 2.561/2020. A nova Portaria, no entanto, mantém um conjunto de alterações com incidência direta nos casos de aborto em casos decorrentes de estupro, que já são permitidos por lei no Brasil.

A Portaria determina que as(os) profissionais de saúde são obrigadas(os) a notificar o caso à autoridade policial e a armazenar materiais de prova, independente do consentimento das mulheres, meninas e/ou seus responsáveis legais, quando cabível. A psicóloga, professora da UFMG e integrante da Comissão de Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia, Claudia Mayorga, alerta que essas medidas podem transmitir a ideia de que o objetivo é diminuir a impunidade dos agressores, mas este não é um caminho eficaz e muitos prejuízos podem decorrer dessas mudanças.

“A Portaria é inconstitucional e antiética porque viola o sigilo profissional na área da saúde, que deveria ser protegido, pois está relacionado ao estabelecimento do vínculo de confiança entre pacientes e profissionais. Essa quebra pode ter como um dos principais efeitos o receio de meninas e mulheres de buscarem ajuda no SUS, porque podem estar sob a ameaça de uma denúncia, ainda que não consentida. Isso é muito grave”, enfatiza Claudia Mayorga.

A conselheira e integrante da coordenação da Comissão de Direitos Humanos do CRP-MG, Liliane Martins, acrescenta: “A resolução leva o aborto legal da área da saúde para a área jurídica desrespeitando e desconsiderando que o tema é da saúde pública, assim como as características das mulheres que são criminalizadas por esse ‘crime’ no Brasil, que são em grande maioria mulheres negras e pobres, pois as mais informadas e com recursos encontram uma forma mais segura de fazê-lo. Pensando no SUS como um sistema que trabalha a equidade, a integralidade e a universalidade da saúde, estamos em falta grave para com a saúde reprodutiva das mulheres”. Liliane Martins também é conselheira referência da Comissão Orientação Mulheres e Questões de Gênero do CRP-MG.

Insegurança jurídica para profissionais de saúde – A psicóloga e doutora em bioética, ética aplicada e saúde coletiva, Letícia Gonçalves, aponta que a Portaria tem como uma das suas consequências a produção de confusões em torno do papel de profissionais de saúde na atenção às pessoas em situação de abortamento previsto em lei. O que leva a um cenário de insegurança jurídica, pois entra em conflito com outras normativas, especialmente relacionadas à garantia do sigilo profissional.

“O mais importante é que profissionais acompanhem os desdobramentos jurídicos da portaria e mantenham seu trabalho com foco na assistência integral à saúde, consultando seus respectivos conselhos de classe na ocorrência de dúvidas mais específicas”, explica Letícia Gonçalves. Segundo ela, há um pedido de liminar que pleiteia ao STF a suspensão da Portaria, mas o Supremo não se posicionou ainda. Havia uma audiência marcada para o último dia 15, mas foi suspensa temporariamente.

A Portaria que havia sido publicada em agosto incluía, ainda, a necessidade de profissionais de saúde informarem sobre a possibilidade de visualização de ultrassonografia, ainda que não questionados. “Este tipo de conduta tem sido compreendido como nocivo à saúde mental das pessoas que interrompem voluntariamente uma gestação e foi retirado pelo próprio Ministério da Saúde, em texto que altera a portaria 2.282/2020”, explica Letícia Gonçalves.

Postura ética – Considerando esse contexto, quais são os parâmetros para uma postura ética de psicólogas(os) perante a questão do aborto?

Letícia Gonçalves aponta: “o trabalho de psicólogas(os) deve continuar se orientando pela promoção da saúde integral, que envolve bem-estar físico, mental e social, para as pessoas que demandem atendimento. A atual portaria não deve contribuir para a criação de barreiras para acesso aos serviços e cuidados em saúde ou para a suspeição da palavra das mulheres acerca dos relatos de violência sexual sofrida. Psicólogas(os) têm o dever de atuar, conforme o Código de Ética Profissional do Psicólogo, Resolução CFP Nº010/05, ‘no respeito e na promoção da liberdade, da dignidade e da integridade do ser humanos, conforme os valores que embasam a Declaração Universal dos Direitos Humanos’”.

Mulheres na mira conservadora – Diante de retrocessos nos casos de abortamento já previstos em lei, a possibilidade de descriminalização do aborto no Brasil parece um horizonte cada vez mais distante o que, ao mesmo tempo, revela a necessidade do engajamento e do debate público em torno do tema.

“Como diria Simone de Beauvoir ‘basta uma crise política, econômica e religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados’. E é esse o momento que passamos hoje no país, um momento de retrocessos e de perda de direitos”, analisa a conselheira Liliane Martins.

Claudia Mayorga também faz uma leitura semelhante do atual momento histórico: “apesar de muitas lutas pela descriminalização do aborto, inclusive na América Latina, o que se assiste agora é retrocesso e conservadorismo e as mulheres têm sido um dos alvos prioritários desses ataques conservadores. Isso se deve ao avanço dos movimentos feministas e é fundamental pensarmos na experiência das mulheres na sua diversidade”.

A psicóloga propõe que se continue fortalecendo redes de apoio, solidariedade e de luta no campo legal para garantir o que já havia sido reconhecido e conquistar avanços. “É uma pauta que deve se difundir, se multiplicar e considerar as várias especificidades das mulheres. Somos um país marcado por uma história colonial, onde mulheres negras, indígenas, além das violências sexistas e patriarcais, também vivenciam as violências racista”, defende.

Contribuições da Psicologia – A Psicologia tem se posicionado no debate sobre a descriminalização do aborto e tem sido uma voz reconhecida. A doutora em bioética, Letícia Gonçalves, destaca: “a nova Portaria quando inclui e até infla os riscos físicos em decorrência da realização do abortamento, opta por não incluir aspectos relacionados aos riscos psíquicos. Essa hipótese é historicamente defendida no Brasil e no mundo, como forma de sustentar a defesa de criminalização total da prática. Entendo que esta não inclusão possa ser lida como uma contribuição da Psicologia brasileira ao debate sobre a impossibilidade de relação causal entre aborto e adoecimento psíquico”.

Em 2018, o STF realizou audiências públicas devido à Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442 que, na prática, pode resultar na descriminalização do aborto. Letícia Gonçalves e Sandra Elena Sposito representaram o CFP na ocasião, no entanto, não houve nenhum desdobramento jurídico desde então.

Livro – O CRP-MG publicou o livro “Práticas acadêmicas e políticas sobre o aborto”, em 2019. As organizadoras são Paula Gonzaga, Letícia Gonçalves e Claudia Mayorga. O livro é resultado do I Encontro Nacional de Pesquisa e Ativismo sobre Aborto, que aconteceu em Belo Horizonte, nos dias 28 e 29 de setembro de 2017.

“A proposta é refletirmos na Psicologia, em diálogo com outros campos do conhecimento, sobre formas de avançarmos nessa pauta. Infelizmente, é um assunto que gera bastante polêmica e as posições muito inflamadas não nos levam a lugar nenhum. Convido a categoria de psicólogas e psicólogos a refletirem juntas e juntos sobre essa agenda, com profundidade, complexidade e de forma laica, pensando que qualquer atuação profissional e científica em Psicologia deve se basear numa perspectiva laica, baseada nos direitos humanos”, defende Claudia Mayorga.

Posicionamentos do CRP-MG – Acesse posicionamentos que o CRP-MG sobre o assunto:

Nota de repúdio a iniciativas que buscam enganar mulheres sobre o aborto

Nota da Comissão Mulheres e Questões de Gênero sobre o dia 28 de Setembro, Dia da Descriminalização do Aborto



– CRP PELO INTERIOR –