Entrevista: conselheira Liliane Martins aponta consciência da Psicologia no seu papel de defensora dos direitos das mulheres

Empoderamento feminino e interseccionalidade são objeto da atuação Psi.

Em 1977, a Organização das Nações Unidas (ONU) proclamou oficialmente 8 de março como o “Dia Internacional dos Direitos da Mulher e da Paz Internacional”. Enquanto isso, frequentemente a Organização Mundial da Saúde (OMS) produz relatórios apontando que o público feminino sofre muito mais de depressão que os homens – em 2019 a porcentagem de diagnósticos era de 70% versus os 30% para homens – resultado da enorme carga emocional decorrente do que se espera da mulher, pelo simples fato de ser mulher, implicando em uma demanda excessiva, na disparidade de tratamento e representação social.

A Psicologia, por sua vez, segue comprometida com a mudança deste cenário pela via clínica e também coletiva, incentivando e se implicando na defesa de direitos e no empoderamento feminino. No recorte desta afirmação é possível mostrar a atuação do Conselho Regional de Psicologia – Minas Gerais (CRP-MG), que tem colocado em prática por meio de incidências políticas, representações em outras instituições e orientações à categoria, como deve ser o trabalho ético pelo fim dos machismos, misoginias, racismos, lgtbfobias e todas as formas de opressão.

Para falar sobre este assunto, entrevistamos Liliane Martins, que ao lado de outras três conselheiras, conduz a Diretoria do CRP-MG no XVII Plenário, além de ser a coordenadora e referência da Comissão de Orientação em Psicologia, Mulheres e Questões de Gênero, firmando a representação feminina, negra e lésbica neste espaço de poder.

60 anos da Psicologia – A entrevista integra o conjunto de ações que o CRP-MG está promovendo para marcar os 60 anos de regulamentação da Psicologia no Brasil. Periodicamente, o Conselho tem publicado conteúdos que abordam assuntos importantes para o campo profissional e científico. A série já abordou avanços e desafios para a Psicologia em relação aos sujeitos trans e dissidentes de gênero e também para a preservação de cultura e direitos indígenas.


Na próxima semana teremos o 8 de março, Dia Internacional da Mulher. O CRP-MG, tradicionalmente marca a data para mostrar à toda categoria Psi a necessidade de se implicar na proteção dos direitos das mulheres. Olhando para o cenário atual, o que você vê como maior desafio nesta missão de preservar os direitos femininos?

É uma alegria muito grande vivenciar mais um oito de março, data muito importante para nós, mulheres e também para a categoria psi, considerando que somos a grande maioria. Além disso, estamos vendo, finalmente, o fim da reclusão provocada pela pandemia e que após anos de retrocessos no país, iremos para as ruas falar de um presente e de um futuro prósperos e viáveis para a preservação dos direitos das mulheres. Temos muitos desafios pela frente. Devemos permanecer atentas(os) à atuação do Congresso, sobretudo das bancadas conservadoras, que irão nos exigir dedicar energia suficiente para defender conquistas e cobrar trabalho em prol dos nossos direitos, das políticas públicas que nos atendem.


O exercício da Psicologia especificamente em contextos terapêuticos voltados às mulheres tem conseguido avançar sob a ótica da emancipação feminina?

Sim. Por meio do nosso trabalho, do nosso acolhimento, temos avançado em relação à emancipação da mulher pensando e criticando nas mais diversas direções, sempre levando em conta toda a sua complexidade, seja ao descobrir violências e relações tóxicas/abusivas ou os impactos dos padrões sobre os corpos. Felizmente, as mulheres, por sua vez, se mostram mais abertas a esses debates e não posso deixar de ressaltar que as teorias do feminismo e do feminismo negro são outro ponto que nos fazem progredir.

Como as relações de gênero impactam na saúde mental das mulheres?

Começando pelas jornadas de trabalho, que hoje são mais do que triplas. Estamos trabalhando fora e dentro de casa, cuidando dos filhos e estudando, sonhando em progredir. Ocupamos os mesmos cargos que os homens, mas ainda recebendo menos e quando apuramos ainda mais o olhar, vemos que as mulheres negras ganham ainda menos que as brancas. Isso mostra a urgência de entender as relações de classe, de gênero e de raça e como estão interligadas sob o viés da interseccionalidade. Não há como falar de direitos das mulheres sem especificar que as mulheres negras ainda estão buscando direitos como o de estudar, de ocupar espaços políticos e determinados postos de trabalho.

Sua vivência acadêmica é focada em gênero e sexualidade e mais recentemente, na interseccionalidade. Pode explicar brevemente como estes estudos têm contribuído para sua prática Psi e também para sua atuação como conselheira do CRP-MG?

Minha formação enquanto graduação de Psicologia é focada nas questões de gênero e sexualidade, colocando luz sobre as questões LGBT. Na pós-graduação e mestrado, segui na direção dos direitos humanos e agora, no doutorado verticalizei ainda mais no ponto da interseccionalidade. Certamente isso vem ajudado muito nos meus atendimentos clínicos pois, grande parte se dá com pessoas negras e pessoas lgbts. O arcabouço teórico – baseado nas teóricas negras – que adquiri a partir dos meus estudos contribuem enormemente para o meu fazer Psi e também para estar como conselheira do CRP-MG. Temos hoje um plenário de 30 psicólogas(os), sendo somente seis negras(os). Nas comissões temáticas trazemos o racismo para a reflexão, sugerindo implicação, lembrando que não haverá democracia enquanto existir discriminação racial e que nosso trabalho é urgente na direção da união de gênero, raça e classe. São as mulheres negras que estão ainda na base da pirâmide social, sustentando o país.

Aqui no CRP-MG, vejo com muita seriedade a oportunidade de fazer a representação das mulheres negras estando na vice-presidência. Até muito pouco tempo nós não ocupávamos estes lugares. Vendo TV, ouvindo música, andando pelas universidades, encontramos poucas de nós ainda, mas continuamos caminhando por essa apropriação de espaços que são nossos por direito.

Uma variação que traz ainda mais complexidade para a interseccionalidade é a questão estética representada pelo formato, tamanho e peso do corpo, inserindo-se como importante forma de opressão, unindo ao colonialismo, racismo, machismo, sexismo, classismo, etarismo, capacitismo e lgbtqfobia, entre outras formas de dominação. A Psicologia se mostra atuante neste sentido?

Sim. Há muitos anos o CRP-MG vem somado ao trabalho de diversas instituições e coletivos. A Rede de Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres de Minas Gerais é uma delas. No próximo dia 6 haverá um evento na Assembleia Legislativa mineira denominado Sempre Vivas, onde nos faremos representar por meio da presença de uma integrante da Comissão de Orientação Mulheres e Questões de Gênero. Além disso, estamos permanentemente atentas às construções das políticas públicas voltadas para as mulheres. Neste mês faremos reuniões com as deputadas estaduais Ana Siqueira (Rede) e lohana França (PV) para dialogar sobre pautas relacionadas às mulheres, buscando a criação de leis que propiciem nossa emancipação.

Então está no radar do CRP-MG incentivar e até mesmo tentar contribuir com a elaboração de políticas públicas para as mulheres?

Com certeza. É muito importante tentarmos garantir a paridade nos diversos espaços. No CRP-MG mesmo, somos maioria enquanto conselheiras. A Diretoria é composta somente por mulheres representando gerações e histórias diferentes, o que propicia nos completar no trabalho. Veja quão importante isso é dentro da Psicologia. Há 20 anos não seria possível portanto, precisamos acreditar que podemos ir mais longe, que podemos construir uma ciência e uma profissão onde haverá espaço para a diversidade, para compreender que não há cura para o que não é doença e para entender que a estrutura do racismo e do machismo não poderão ser perpetuar.


Para encerrar, como você mesma já assinalou, o XVII Plenário tem maioria de mulheres e a Diretoria é absolutamente feminina, na qual você está como vice-presidenta e, junto com a presidenta trazem outras duas representatividades: são pretas e lésbicas. Pode explicar se há intencionalidade nestes fatos?

Sim. É muito importante termos na autarquia uma presidenta e vice negras e lésbicas. Estamos falando em representatividade e seu papel dentro da Psicologia mineira, uma ciência e profissão diferentes que vem sendo construídas nos últimos anos. De novo, no passado recente isso não era possível. Temos que acreditar no futuro e trabalhar por ele.

Acompanhe aqui o trabalho da Comissão de Orientação Psicologia, Mulheres e Questões de Gênero do CRP-MG



– CRP PELO INTERIOR –